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REINTRODUÇÃO

Como animais extintos estão voltando às florestas de Florianópolis (SC)

20 de maio de 2025
Letícia Klein
13 min. de leitura
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Domi, um macho de bugio-ruivo, foi reintroduzido no Parque Estadual do Rio Vermelho, em março de 2024, junto com sua parceira, Mãe Ruiva, e o filhote, Peri. Foto: Gustavo Fonseca/IFB

A meia dúzia de crianças surpreendeu. Num domingo de manhã nublado na Trilha do Sertão do Assopro, na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, elas foram as que mais interagiram com o guia durante o Vem Passarinhar, evento de observação de aves realizado mensalmente pelo Instituto Fauna Brasil (IFB). Elas reconheciam as aves pelo canto ou por uma olhadela, rapidamente se colocando a postos para fotografar. Segundo o guia, o local abriga entre 120 e 130 espécies de aves, como aracuã, tucano-de-bico-preto, saíra-ferrugem, arapaçu-verde e gavião-tesoura.

Caynã Bueno de Oliveira, de 7 anos, diz que conhece pelo menos 400 espécies de aves de cor. Além de fotografar, ele desenha e adora estudar sobre o assunto em guias e vídeos de canais especializados. “Em outros ambientes ele é tímido, mas aqui ele se solta e conversa com o guia e os colegas. Se o assunto é aves, ele acessa as pessoas de outro lugar”, diz o pai, Rafael Araújo de Oliveira. Só de o guia falar em tentar ver o macuquinho, espécie considerada extinta localmente até alguns anos atrás, o menino já abriu um sorriso e saiu em disparada.

Vem Passarinhar é organizado por diferentes instituições em todo o Brasil de forma gratuita. Em Florianópolis, começou a ser realizado em 2022 como uma forma de engajar as pessoas a verem os animais que tinham sido tratados, a partir de resgate, apreensão e entrega voluntária de todo o estado, e depois reintroduzidos na natureza pelo Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama (Cetas).

Na época, a operacionalização do órgão era de concessão do coletivo Espaço Silvestre, que em 2010 tinha lançado o projeto de reintrodução do papagaio-de-peito-roxo no Parque Nacional das Araucárias, no oeste de Santa Catarina. Cerca de 250 indivíduos da espécie, reabilitados no Cetas, atenderam aos critérios sanitários, comportamentais e genéticos para serem livres de novo. Os eventos de observação de aves acontecem lá também.

Em 2023, Vanessa Tavares Kanaan, bióloga idealizadora do projeto de soltura dos papagaios e então diretora técnica do Espaço Silvestre, decidiu fundar sua própria ONG com foco na conservação da fauna silvestre, percebendo a grande quantidade de animais recebidos pelo Cetas. Assim nasceu o Instituto Fauna Brasil, que deu continuidade ao Vem Passarinhar e ao projeto dos papagaios, além de expandir as espécies para reintrodução na Ilha de Santa de Catarina, onde fica Florianópolis, desta vez com foco na fauna extinta: bugios-ruivos e pequenos felinos.

“O fato de estarmos numa ilha dificulta a refaunação natural. Por isso, a reintrodução acaba sendo uma ferramenta importante para espécies que dificilmente voltariam naturalmente”, explica Vanessa. No ano passado, o primeiro projeto de soltura de silvestres do Instituto em Florianópolis trouxe de volta cinco grupos de bugios-ruivos aos remanescentes de Mata Atlântica.

Papagaio-de-peito-roxo reintroduzido no Parque Nacional das Araucárias, no oeste de Santa Catarina. Foto: Vanessa Kanaan/IFB

Os bugios-ruivos voltaram

A rotina de monitoramento começou cedo: às 6h30, já no topo do morro. O monitoramento dos bugios na floresta é feito por busca ativa, drone termal, armadilha fotográfica e gravador. Deu tempo de fazer um voo e meio de drone antes de começar a chover, o que nos levou a percorrer a trilha pela floresta para tentar localizar a família de bugios solta em junho do ano passado.

Depois de mais de duas horas no meio do mato buscando vestígios como cheiro, fezes ou vocalização de bugio, sem sorte, o sol surgiu e o drone voltou a subir. Desta vez, a expectativa foi atendida: Mike apareceu na câmera às 10h23, no alto de uma árvore. Próximo a ele, um galho cheio de folhas se mexia de forma tão peculiar que só podia indicar que sua companheira, Nariz, também estava ali. Os dois tiveram um filhote em cativeiro, chamado Moçamba, e os três foram soltos junto com a fêmea jovem Covid – nascida na época da pandemia, por isso o nome.

1763 tinha sido o último ano dos bugios-ruivos (Alouatta guariba) nas florestas da Ilha de Santa Catarina, segundo relatos científicos. A extinção deles e de tantas outras espécies ali se deu principalmente devido à fragmentação de habitats, ao desmatamento e à caça ilegal. Em 2024, a extinção dos bugios começou a ser revertida com a reintrodução de 16 indivíduos na natureza, sendo três famílias no norte da ilha, no Parque Estadual do Rio Vermelho, e duas famílias no sul, no Monumento Natural Municipal da Lagoa do Peri, onde estão Mike, Nariz e companhia.

“Eu sou muito grata por ter tido a oportunidade de estar na soltura desses animais e de fazer parte desse projeto. Eu trabalhei com eles em cativeiro por muito tempo, e ver aquelas carinhas, que eu via atrás da grade todos os dias, agora em liberdade foi incrível”, diz Alessandra Lima da Rocha, bióloga do IFB. Sua parceira de trabalho, Maria Luiza dos Santos Rosa, compartilha do sentimento de gratidão: “É muito bonito fazer parte disso, esses bichos mereciam voltar a ser donos das próprias histórias.”

A ideia da reintrodução surgiu quando Vanessa e suas colegas assumiram a cogestão do Cetas em 2019 e viram que havia um plantel de bugios lá, resgatados de outras regiões do estado. Nos anos seguintes chegaram novos filhotes e também nasceram alguns durante o processo de reabilitação. Até todos estarem prontos para a soltura, e as autorizações dos órgãos ambientais serem liberadas, passaram-se cinco anos. Cada bugio recebeu um microchip de identificação, e as famílias foram reintroduzidas uma por vez ao longo do primeiro semestre, depois de passar quatro semanas em um recinto telado na floresta para se acostumar com o ambiente novo.

Nesse período de ambientação, a alimentação que as pesquisadoras davam aos animais foi mudando dia a dia, com aumento gradual das folhas nativas e diminuição da comida que era fornecida no Cetas (frutas, folhas e vegetais do mercado). O pré-requisito para soltura era que cada indivíduo se alimentasse de pelo menos dez espécies vegetais, como ingá, embaúba, aroeira, jacarandá-de-espinho, flor de ipê, coquinho-jerivá, rabo-de-macaco, maria-mole, folha de palmeira, canelinha e o fruto da bromélia. A dieta dos bugios é composta 80% por folhas, e o restante inclui frutas, flores, cascas de árvores e raízes.

Segundo estudos do projeto Fauna Floripa, a ilha tem capacidade para abrigar até 1.500 indivíduos da espécie. “A minha expectativa é que os bugios consigam se reproduzir e expandir a população para trazer realmente a espécie de volta, mais forte e resiliente, até que se torne um dia estável”, diz a bióloga Raiane dos Santos Guidi, que habitualmente conduz as saídas para monitoramento – o processo é feito a cada 15 dias no sul da ilha e duas vezes por semana no norte, onde está a sede do IFB.

Para que a população de bugios se torne estável no longo prazo, ainda são necessárias mais solturas. “O número de bugios soltos é muito pequeno. Já sinalizamos para os órgãos ambientais que, no segundo semestre, nós conseguiríamos atender animais encontrados em situação de deslocamento, que vêm de vida livre, de Santa Catarina, Rio Grande do Sul ou da Argentina, que é a nossa unidade genética”, afirma Vanessa.

Ela conta que o instituto está pleiteando a cessão de uso de uma área para construção de um centro de reabilitação, o que permitiria às pesquisadoras voltar a trabalhar com animais que precisam de um processo mais longo de readaptação, como filhotes.

Ciência cidadã, educação ambiental e parcerias

Desde as solturas dos bugios, o Vem Passarinhar ganhou um novo apelo: o de ver ou ouvir os macacos durante a trilha. Com o objetivo de reforçar a ciência cidadã, os encontros de observação de aves passaram a ser feitos nos locais onde há relatos de vocalização de bugios. O IFB mantém grupos de mensagens e perfil nas redes sociais onde as pessoas podem enviar registros de onde viram ou ouviram os animais. Algumas descrições também chegam durante as atividades de educação ambiental.

“A ciência cidadã é muito importante para o projeto. Os relatos contribuem para o monitoramento, para sabermos aonde os animais estão indo, se estão se aproximando ou não de casas, se estão vivendo bem na natureza. Também é importante para as pessoas saberem quem é aquele animal e o que ele está fazendo lá”, avalia Alessandra.

Todos os projetos do instituto têm como base a ciência cidadã e a educação ambiental, buscando conscientizar e aproximar a população local dos projetos e das outras espécies. As atividades são realizadas nas comunidades, escolas, entidades e também de porta em porta em cada área de soltura dos animais.

As pesquisadoras entregam panfletos, ímãs e adesivos, explicando os projetos de reintrodução para os moradores. Nas lojas e restaurantes que autorizam a fixação de cartazes, uma mensagem convida quem quer que veja ou ouça um bugio a entrar em contato com o instituto. Somando apresentações em eventos e congressos, palestras em parceria com a Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (Floram) e o Vem Passarinhar, já foram alcançadas mais de 4 mil pessoas.

Para Vanessa, nenhum dos projetos do IFB daria certo se não fosse a ciência cidadã. “As pessoas se tornam parte, começam a sentir orgulho do projeto, começam a proteger os animais e também são uma fonte rica de informações. Elas possibilitam que uma equipe de cinco pessoas se tornem dezenas lutando em prol de uma mesma causa.”

A terceira forma que o instituto usa para engajar as pessoas é o voluntariado, o que também ajuda a equipe de tamanho enxuto. Durante os meses de ambientação e soltura, havia sempre algum voluntário disposto a participar das atividades, segundo as pesquisadoras, que reforçam a necessidade de voluntários também para as atividades de monitoramento com drone e educação ambiental, tão importantes para o projeto quanto a reintrodução em si.

Para completar a rede de parceiros, entra o poder público com a autorização para soltura dos animais em unidades de conservação sob sua gestão. A parceria com a Floram também inclui apoio logístico com veículos e profissionais, instalação de placas de sinalização, impressão de materiais de divulgação, atuação junto aos conselhos das unidades de conservação e atividades de educação ambiental, principalmente nas escolas.

“A parceria é fundamental”, afirma Mariana Coutinho Hennemann, chefe do departamento de unidades de conservação da Floram. “Como órgão gestor, nós temos as áreas e o conhecimento sobre elas, e o instituto entra com o conhecimento e a experiência de manejo com os animais, então um complementa o outro.”

Segundo a gestora, a fundação tem buscado caminhos para recuperar a biodiversidade perdida. “Os estudos mostram claramente que houve uma grande perda de biodiversidade na ilha, principalmente de fauna, por causa da presença do homem e da devastação das florestas. Hoje, boa parte delas está nas unidades de conservação, o que garante que a recuperação continue e nos permite tentar trazer algumas espécies de volta”, diz Mariana.

A Ilha de Santa Catarina tem 33% do seu território protegido por unidades de conservação municipais e 8% por estaduais e federais. Ao longo do tempo, a meta do IFB é aumentar as populações de espécies existentes e incluir outras extintas nos seus projetos de refaunação — a lista de espécies extintas do projeto Fauna Floripa inclui 11  mamíferos (entre felinos, veado, queixada e anta) e aves como a jacutinga e o papagaio-de-cara-roxa.

Felinos para restaurar o equilíbrio

Indivíduo de gato-maracajá tratado pelo Cetas e destinado a uma instituição legalizada. A espécie é uma das próximas para reintrodução na Ilha de Santa Catarina. Foto: Daniel De Granville/IFB

O trabalho do instituto para trazer de volta os pequenos felinos começou em 2023, com base nos estudos do Projeto Fauna Floripa, que identificou a extinção de seis espécies da família na ilha: suçuarana, onça-pintada, jaguatirica, gato-mourisco, gato-maracajá e gato-do-mato-pequeno. A entrada regular de felinos no Cetas (vindos de outras regiões do estado), numa ilha onde eles costumavam existir, foi o que deu origem ao projeto, assim como no caso dos bugios.

A ausência desses predadores perturbou o equilíbrio natural dos ecossistemas da ilha, provocando, entre outros problemas, o avanço de espécies exóticas invasoras, como os saguis, que estão predando aves nativas. “A gente precisa muito mais dessas espécies do que elas de nós, porque estamos entrando num colapso global, uma grande crise planetária de vida, e precisamos rever nossos modos de vida, decisões, escolhas e limites também”, avalia Camila Rezende Ayroza, bióloga da equipe do IFB responsável pelo projeto dos felinos.

“Muita gente acredita que conservação é não fazer nada; é sentar e observar e não interferir, como se nós humanos não fôssemos parte dessa cadeia”, complementa Vanessa. “A destruição da biodiversidade está ocorrendo numa velocidade muito maior do que qualquer ação em prol da conservação. Se a gente não fizer nada, a gente está escolhendo sentar e assistir de camarote.”

Com o apoio da ONG Panthera, através do Fundo de Ação para Pequenos Gatos, o IFB está avaliando a viabilidade de reintroduzir o gato-maracajá (Leopardus wiedii) e o gato-do-mato-do-sul (Leopardus guttulus), recentemente considerada uma subespécie do gato-do-mato-pequeno, que existe somente na região Sul do Brasil. “Além de estar ameaçada, esta espécie corre o risco de estar hibridizando com outra espécie de gato-do-mato na Mata Atlântica. Assim, o projeto se torna ainda mais importante, porque a ilha pode ser o único local onde conseguiremos manter a espécie com uma linhagem genética pura”, afirma Vanessa.

Nesta primeira fase do projeto, a equipe está em busca de respostas. As pesquisadoras têm avaliado as áreas adequadas para reintrodução de cada espécie, considerando a presença de presas (como pequenos roedores, aves, anfíbios e répteis), a existência de espécies raras, a passagem de pessoas e a presença de gatos domésticos e ferais (asselvajados). Com um panorama sobre as ameaças, é possível criar estratégias para reduzi-las. Esta etapa foi desenvolvida a partir do diálogo com especialistas e do levantamento de indivíduos fontes para reintrodução – provavelmente de cativeiro, pois felinos de vida livre poderiam voltar para seus locais de origem.

O projeto também inclui ações de sensibilização e educação ambiental com as comunidades locais, incluindo uma pesquisa de percepção humana online e de porta em porta em relação à possível volta dos felinos, que depende ainda de autorização do governo. As pesquisadoras também estão elaborando materiais para capacitar os professores para falarem das reintroduções de fauna e flora na ilha.

O próximo passo é escrever projetos para captar recursos e então executar a reintrodução dos felinos selecionados no futuro próximo. Em longo prazo, existe a possibilidade de trazer de volta a jaguatirica, felino de maior porte. “Os indivíduos na natureza têm um impacto muito grande sobre a nossa vida diariamente, devido a todos os serviços ecológicos que eles fazem. E podemos trazer esses serviços de volta, mas também trazer espécies que têm o mesmo direito de existir como a gente tem”, afirma Vanessa.

Seu maior sonho é que os projetos consigam trazer de volta as espécies que não estão mais aqui para que elas possam se reproduzir e sobreviver sem a interferência humana. O propósito final: que o reequilíbrio para a saúde do ecossistema se restabeleça, sinal de que todos os seres vivos estão exercendo seu direito inerente à vida.

Fonte: Mongabay

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