O labrador chocolate Pudim, 9, foi doador de sangue para cães enfermos na maior parte de sua vida. Era forte, exímio nadador e com fôlego para ficar em uma gaiola por 18 horas para atravessar o Atlântico em viagens internacionais.
Tinha 16 mil seguidores nas redes sociais. Mas, sua maior virtude era mesmo algo bem humano: ele dava suporte emocional e ajudava a amenizar crises de ansiedade da tutora, a designer, Fabiana Amaral, 47, que está no espectro do autismo.
Mesmo com tantos predicados, Pudim sucumbiu diante de uma planta ornamental. Morreu intoxicado, com falência hepática, depois de cinco dias na UTI.
Ele teve contato com a Cycas revoluta ou palmeira-sagu, que é extremamente tóxica em todas as suas partes —especialmente sementes e folhas mais jovens—, mas que está espalhada por jardins, canteiros, praças, parques, stands de empreendimentos imobiliários e demais áreas verdes nas mais diversas regiões de São Paulo.
“Ele ficou todo amarelado, os olhos, a pele, a barriga. Foi muito triste e penoso vê-lo daquele jeito. Meu Pudim era muito resistente, mas essa planta acabou com meu amigo. Estava preparando uma grande festa para os dez anos dele”, diz Fabiana.
Em alguns cidades como o Rio de Janeiro e Uberaba (MG), o plantio da Cycas é proibido por lei. Na capital paulista, a proibição ao cultivo de espécies tóxicas em áreas públicas existiu entre 2003 e 2022, quando foi revogada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), com parecer da Procuradoria Geral do Município.
A alegação para a descontinuidade foi a criação, em 2011, da lei de “Requalificação Arbóreo e Ambiental da Cidade de São Paulo”, que não impede o cultivo da planta tóxica de forma explícita.
O contato do cão com a Cycas, que não tem antídoto contra sua toxicidade depois de ingerida, foi em uma área ajardinada aberta, de uma instituição financeira, na Vila Madalena, na zona oeste.
A reportagem encontrou a planta, que pode ser comprada livremente pela internet com valores entre R$ 40 a R$ 330 e tem baixa manutenção, em vários locais abertos da cidade, como na praça Pereira Leite (zona oeste), na praça da Paz (zona norte), no parque do Carmo (zona leste) e no parque Ibirapuera. Até mesmo áreas ajardinada de lojas com produtos para animais é possível encontrar a Cycas.
De acordo com o médico veterinário Marcelo Quinzani, do Grupo Pet Care, “os sintomas de intoxicação, principalmente gástricos, podem aparecer em algumas horas após a ingestão: vômito, geralmente, o primeiro sinal, diarreia, às vezes, com sangue, cansaço extremo, falta de apetite, mucosas e olhos amarelados, tremores ou convulsões, urina escura, aumento da sede ou micção e sinais de dor abdominal”.
Segundo o profissional, os relatos de intoxicação por plantas que chegam na clínica são “bastante comuns”. “Na maioria das vezes acontece com cães jovens, que ficam muito tempo sozinhos em casa e com acesso a jardins ou vasos”.
Embora muito disciplinado, Pudim mastigou partes da planta enquanto fuçava um gramado, hábito comum para animais quando saem para passear.
O tratamento para a intoxicação por Cycas é apenas sintomático. Quanto mais rápido for a intervenção médica maior a chance de sucesso no tratamento, evitando a falência hepática, segundo Quinzani.
A botânica Maria do Carmo Estanislau do Amaral, da Unicamp, responsável pela implantação do jardim educativo da universidade, relata que um dos primeiros registros documentados de Cycas no Brasil foram de amostras coletadas em Minas Gerais, em 1844, pelo médico e botânico Hugh Algernon Weddell.
Ela conta que a toxicidade da planta é tanta que há relatos históricos de envenenamento.
“Em 1770, membros da expedição de descobrimento da Austrália pelos ingleses, sob o comando do capitão James Cook, sofreram uma forte intoxicação com sementes de Cycas. Após longa viagem, a tripulação estava faminta. Assim que desembarcaram, trouxeram para o cozinheiro do navio grande quantidade de sementes. Ele fez uma sopa que causou violentas reações de vômitos e diarreias em toda a tripulação.”
A professora explica que “as sementes são muito tóxicas para seres humanos e outros mamíferos, por conter cycasina, uma toxina difícil de remover, mesmo fazendo repetidas lavagens.”
A espécie, de acordo com a professora, é originária do leste da Ásia, especialmente no Japão e em ilhas próximas e na região costeira ao leste da China. Apesar de sua distribuição originalmente restrita, é uma das espécies mais amplamente cultivada em todo o mundo.
“Existem estudos que demonstram que, quando ingeridas, as plantas de Cycas revoluta são extremamente venenosas para animais, além dos seres humanos. Nos Estados Unidos, existem estimativas de uma taxa de mortalidade entre 50% a 70% quando o animal ingere partes dessa espécie”.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente informou “que não produz a espécie Cycas Revoluta nos viveiros municipais. Em São Paulo, os plantios são feitos com espécies preferencialmente nativas, seguindo a legislação vigente”
A secretaria recomenda cautela à utilização da planta e de qualquer outra com potencial tóxico ou com espinhos em jardins privados e públicos, especialmente em locais com acesso de crianças ou animais de estimação.
Para Fabiana Amaral, “nenhum cão merece passar passar pelo que o meu Pudim passou, uma morte precoce, dolorosa. Divulgando isso, tutores irão saber o quanto essa planta é tóxica e não deixarão seus animais chegarem perto. Não quero que ninguém sofra como eu estou sofrendo”.
Nesta terça-feira (6), o labrador chocolate faria aniversário.
Como proteger seu animal doméstico de intoxicação por plantas
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Conhecer as plantas potencialmente tóxicas e evitar o seu uso ornamental
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Em acidentes, observar a planta ingerida, destruída ou arrancada e visualizar os primeiros sintomas (gástricos e intestinais como salivação excessiva, vômitos e diarreia)
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Buscar imediatamente auxílio veterinário e levar partes da planta ou uma foto
Fonte: Folha de S.Paulo