Atualmente, o Nilo garante a sobrevivência de milhões de africanos. Mas, com a mudança climática, combinada com a exploração humana, começou a contagem regressiva para o segundo maior rio do mundo. Com a previsão de redução das chuvas e episódios de seca que se tornaram cada vez mais recorrentes no leste da África, o fluxo pode ser reduzido em 70%, segundo as piores previsões da Organização das Nações Unidas (ONU).
No delta, o Mediterrâneo toma a cada ano entre 35 e 75 metros de terra desde os anos 1960. Se o mar subir um metro, engolirá 34% desta região do norte do Egito, país-sede da Conferência das Partes sobre o Clima (COP27), e 9 milhões de pessoas serão obrigadas a se deslocar. É o terceiro lugar do planeta mais vulnerável à mudança climática.
A imagem do rio de 6.500 km de extensão, celebrado como um deus no período faraônico com suas feluccas, papiros e mitos, já não tem nada de idílico. Sua transformação está em curso. Em 50 anos, seu fluxo passou de 3.000 m³ por segundo a 2.830 m³, ou seja, quase 100 vezes menos que o Amazonas.
O Lago Vitória, o principal fornecedor de água para o Nilo, está ameaçado pela falta de chuva, a evaporação e as lentas mudanças na inclinação do eixo da Terra. Um dia pode até desaparecer. Algumas previsões incentivam o apetite de muitos, e as tentativas de conter o fluxo do rio, construindo barragens que aceleram uma catástrofe anunciada.
No delta onde o Nilo se une ao mar, o egípcio Sayed Mohamed pode ver suas terras desaparecerem. Em sua origem, em Uganda, Christine Nalwadda Kalema teme perder a eletricidade que ilumina seu lar. No Sudão, Mohamed Joma está preocupado com suas plantações.
— O Nilo é o mais valioso que temos, não devemos permitir que mude — lamenta este agricultor de 17 anos, última geração de uma família de agricultores da cidade de Alty, no Estado de Al-Jazira, no centro do Sudão.
Submerso ou contaminado
No litoral do delta, entre 1968 e 2009 o mar engoliu 3 km de terra. Visto do céu, com imagens de satélites, os canais de Damieta e Roseta, no mar, desapareceram. Em terra, as ondas atingem violentamente as plantações, que afundam literalmente. As paredes de concreto erguidas para protegê-las já estão cobertas até a metade por areia e água.
O fluxo do Nilo enfraqueceu e já não é mais capaz de repelir o Mediterrâneo, cujo nível aumenta com as mudanças climáticas (cerca de 15 cm no século 20). O lodo, que por milênios consolidou a terra e atuou como barreira natural, não chega mais ao mar.
Esses sedimentos de terra e de resíduos orgânicos, em geral arrastados pelas águas e depositados no leito dos rios, ficaram bloqueados no sul do Egito desde que a represa de Assuã foi construída com o objetivo de controlar as inundações nos anos 1960.
Antes, “havia um equilíbrio natural”, explica o chefe da autoridade encarregada da proteção do litoral, Ahmed Abdelqader:
— A cada cheia, o Nilo depositava sedimentos de lodo, que reflutuavam nos canais de Damieta e Roseta. Mas a barragem perturbou esse equilíbrio.
Se as temperaturas continuarem aumentando, o Mediterrâneo avançará 100 metros acima do delta a cada ano, segundo a Agência da ONU para o Meio Ambiente (Unep, na sigla em inglês).
A 15 km da costa, a grande aldeia agrícola de Kafr Dawar – com as suas casas de tijolos vermelhos – ainda está preservada, mas apenas na superfície.
Sayed Mohammed, de 73 anos e com 14 filhos e netos sob seus cuidados, cultiva milho e arroz, em campos irrigados por canais de pedra localizados entre o Nilo e uma rodovia onde ressoam buzinas de carros.
Mas o sal do Mediterrâneo contaminou muitos hectares, enfraquecendo ou matando suas plantações. Os agricultores insistem que os vegetais não são da mesma qualidade. Para compensar os efeitos da salinização do solo, é necessária mais água doce nos campos e mais água bombeada do Nilo.
Desde os anos 1980, Mohamed utilizava bombas que consumiam muito “diesel e eletricidade, que custavam muito caro”. São gastos impossíveis para a população de Kafr Dawar assumir, asfixiada pela inflação e desvalorizações.
Em alguns pontos do delta do Nilo, campos e lavouras foram abandonados. Nos últimos anos, o idoso beneficiou-se de um programa de irrigação baseado em energia solar que visa aumentar a quantidade de água doce e, sobretudo, gerar renda entre a população e evitar assim o êxodo rural. Graças aos mais de 400 painéis financiados pelo escritório local da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ele tem a garantia de que todos os dias seu meio hectare de cultivo terá a água necessária.
A longo prazo, o Mediterrâneo poderá engolir 100 mil hectares de terras agrícolas no delta, localizado a menos de 10 metros acima do nível do mar, segundo a Unep. Uma verdadeira catástrofe para o norte do Egito, responsável por entre 30% e 40% da produção agrícola nacional.
Cortes frequentes
No Egito, 97% dos 104 milhões de habitantes vivem às margens do rio, ocupando menos de 8% do território. Já no Sudão, metade dos 45 milhões de habitantes vive em 15% do território do país, próximo ao Nilo, que garante 67% dos recursos hídricos do país.
Em 2050, a população desses dois países terá duplicado. Suas temperaturas estarão entre dois e três graus mais altas do que as atuais e o Nilo, por sua vez, também terá mudado.
As projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática da ONU (IPCC, na sigla em inglês) preveem que, com o aquecimento global, em 2100 a evaporação reduzirá o fluxo do rio em 70%. Já a quantidade de água disponível por habitante será 75% menor do que é hoje. E as fortes chuvas e inundações que as previsões indicam que poderão ocorrer no leste da África no futuro compensarão apenas entre 15% e 25% dessas perdas, de acordo com esses especialistas.
No entanto, nos 10 países por onde passa, o Nilo garante a sobrevivência dos cultivos e fornece energia para populações que ficam à mercê da chuva e, sobretudo, do seu fluxo. O Sudão, por exemplo, obtém mais da metade de sua eletricidade da energia hidroelétrica. Em Uganda, esse número chega a 80%.
É graças ao Nilo que, desde 2016, Christine Nalwadda Kalema, mãe solteira de 42 anos, consegue iluminar sua mercearia e sua casa, localizada em um bairro pobre da aldeia de Namiyagi, perto do Lago Vitória, no leste de Uganda.
Mas essa eletricidade, que mudou radicalmente sua vida e a de seus quatro filhos, pode não durar para sempre, diz Revocatus Twinomuhangi, coordenador do centro de mudanças climáticas da Universidade Makererere.
— Se as chuvas forem escassas, o nível do Lago Vitória e, portanto, do Nilo, cairá. Isso reduzirá a produção hidrelétrica — alerta.
Segundo o especialista, “nestes cinco ou 10 anos, assistimos a secas mais próximas no tempo e mais intensas, assim como chuvas fortes, inundações e temperaturas cada vez mais elevadas”.
De acordo com um estudo realizado em 2020 por seis pesquisadores de universidades americanas e britânicas – com base em dados históricos e geológicos dos últimos 100 mil anos -, o Lago Vitória pode desaparecer em 500 anos.
Mas, para Kalema, que cultiva banana, café e mandioca em seu jardim para alimentar sua família, todos esses dados sobre mudanças climáticas parecem abstratos. O que ela confirma a cada dia é que os cortes de água são cada vez mais frequentes.
— Por causa dos apagões, meu filho mal consegue fazer a lição de casa. Ele tem que terminar tudo antes do anoitecer, ou estudar à luz de velas — diz, envolta em sua roupa feita de tecidos estampados, muito populares entre as tribos Baganda e Basoga. — Me custa muito dinheiro, considerando que sou a única que atende às necessidades da minha família — completa.
Capturar fluxo
A vida sem eletricidade continua sendo o dia a dia de metade dos 110 milhões de habitantes da Etiópia, apesar de ser o país que mais cresce na África. Adis Abeba conta com sua megabarragem para remediar esta situação, mesmo que tenha que lutar com seus vizinhos.
A Grande Represa do Renascimento (Gerd), cuja construção foi lançada em 2011 no Nilo Azul – que se une ao Nilo Branco no Sudão para formar o Nilo -, tem como objetivo de longo prazo instalar 13 turbinas para uma produção de 5.000 MW. Desde agosto, seu reservatório contém 22 bilhões de m³ de água dos 74 bilhões de sua capacidade total.
Adis Abeba já possui a maior barragem hidrelétrica da África.
— O Nilo é um presente que Deus deu para nós etíopes usarmos — enfatiza o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed.
Mas, para o Cairo, é uma fonte de tensão que questiona um acordo celebrado em 1959 com Cartum, sem a Etiópia, que concede 66% do fluxo anual do Nilo ao Egito e 22% ao Sudão.
Para proteger essa conquista, em 2013, assessores do então presidente egípcio, Mohamed Morsi, propuseram na televisão a destruição da barragem etíope. Hoje, o Egito de Abdel Fatah Al-Sissi continua a temer uma redução drástica no fluxo do Nilo em caso de enchimento muito rápido do Gerd.
Lodo
Nos campos verdejantes de Al-Jazira, onde cultiva pepinos, berinjelas e batatas graças aos canais que nascem no Nilo, Omar Abdelhay constata que o trabalho se torna cada vez mais difícil com o passar do tempo.
Há oito anos, quando este pai de família sudanês – cuja pequena casa de barro tem vista direta para o rio – começou a cultivar as terras da família, “havia bom lodo e o Nilo alimentava adequadamente nossas culturas”. Mas, aos poucos, com as barragens que não param de crescer rio acima, “a água clareou e não tem mais lodo”, diz o agricultor de 35 anos.
Imerso na estagnação política e econômica, abalado por décadas de golpes ou manifestações hostis ao poder militar, o Sudão luta para administrar seus recursos hídricos. Todos os anos chove muito, mas a chuva não é necessariamente benéfica para as culturas devido à falta de um sistema agrícola e de armazenamento e reciclagem da água da chuva.
Hoje, a fome ameaça um terço da população. O país, porém, tem sido um ator importante nos mercados mundiais de algodão, amendoim e goma arábica. Graças aos pequenos canais de irrigação escavados na época colonial, bastava um pequeno fluxo para que a água entrasse e alimentasse suas terras férteis.
Assim como o Sudão, os países ribeirinhos do Nilo – Burundi, República Democrática do Congo, Egito, Etiópia, Eritreia, Quênia, Ruanda, Sudão do Sul, Tanzânia e Uganda – estão na parte inferior do ranking ND-GAIN de vulnerabilidade às mudanças climáticas.
Para Callist Tindimugaya, do ministério da Água e Meio Ambiente de Uganda, “o impacto do aquecimento global será enorme”.
— Se tivermos chuvas escassas, mas fortes, sofreremos inundações. Mas se enfrentarmos longos períodos sem chuvas, teremos menos recursos hídricos. E sem água não se sobrevive — resume Tindimugaya.
Fonte: GZH