Calma, calma. O fato é que os trâmites burocráticos da lei sobre os animais em circo têm produzido, paralelamente, um universo de mensagens eletrônicas sendo repassadas, com fotos, denúncias, depoimentos, acusações, comentários, xingamentos etc. Muita coisa boa se perde nas caixas de entrada e lixeiras, depois que o episódio passa. Gostaria de registrar aqui uma sequência de mensagens – que foram devidamente repassadas a outros endereços, e acabou chegando às minhas mãos, mas que merecem ser vistas por outras pessoas. Tudo começou com uma carta publicada em jornais de Santa Catarina, onde um leitor lamentava – coce os olhos e releia, se tiver dúvidas – que os circos poderiam perder seus animais. O popular ‘Kiko’ copiou a missiva, incluiu seu comentário e enviou a seus contatos. Esse email terminou pautando o articulista Ralph J. Hofmann, daqui de Porto Alegre, que produziu um texto de resposta 99% brilhante – comentários meus estão lá embaixo.
Foto: Marcio de Almeida Bueno
Flagrante de ‘cage madness’: um camelo bebe a urina de seu companheiro de circo
1.
“Essa carta (abaixo no DC) está publicada hoje em vários jornais de SC. O coitado aí não conhece o Cirque du Soleil e outros, além de considerar maus-tratos e crueldade manifestação artística. Diga-me o que entendes por arte e te direi quem és, caro Jorge.
Henrique”
2.
“Diário Catarinense, 05/06/09
Diário do Leitor
Circo
Uma das atividades culturais mais antigas do mundo está com seus dias contados – o circo. Alguém imagina um espetáculo sem elefantes, leões, zebras e outros ‘artistas’? Está em fase final de aprovação um projeto no Senado proibindo a utilização de animais em atividades circenses. Todos irão lamentar, e agora até os ‘palhaços’ irão chorar de verdade.
Jorge D. Hexsel – Florianópolis”
3.
“Circo
Meu amigo Henrique Ortiga Filho, ativista dos direitos animais em Florianópolis me passou um e-mail copiando as declarações de um senhor que lamenta as leis que estão sendo aprovadas eliminando a presença de animais nos espetáculos circenses. Henrique aponta para o fato de que a opção do ‘Cirque du Soleil’ comprova que a qualidade artística de artistas, o estudo de novidades na apresentação de velhas tradições e o treinamento de artistas supera de longe a presença de animais em circos. Para cooperar com ele puxei da minha memória alguma coisa sobre a história circense.
Na realidade o circo se originou nos saltimbancos que acompanhavam as caravanas do mercadores que atravessavam a Europa desde a Itália, a Península Ibérica, passando por Flandres, pelos principados e ducados franceses, entrando na Alemanha, passando à Áustria e depois descendo o Danúbio, visitando e comerciando em cada cidade que tivesse um Mercado (que na época era um certo dia para se fazerem negócios). Essas caravanas sempre tinham artistas, leitoras de sorte, prestidigitadores, acrobatas. Na estrada tinham um chefe eleito, que coordenava a defesa contra ladrões, assaltantes e até senhores feudais gananciosos.. Chamavam-se de Companhias de Comerciantes Aventureiros enquanto os bandos de soldados sob um líder eram Companhias de Soldados ou Mercenários.
Esses grupos de saltimbancos que acompanhavam as Companhias de Comerciantes essencialmente entretinham o povo, contra contribuições voluntárias, mas cada artista costumava investir em alguma mercadoria para reforçar seus ganhos. Com o tempo, vieram a ser conhecidos por circos, em memória do ‘pão e circo’ romano. Alguns também tinham um urso ou algum outro animal que era mostrado ao povo, mas o transporte de animai era oneroso. Foram estes circos que representaram as primeiras peças teatrais populares nas cidades-mercado à margem de sua viagem de aproximadamente três anos do Oeste da Europa até o Bósforo e de volta.
O conceito de animais em circo essencialmente foi do Grande Circo de Roma, onde gladiadores massacravam animais na arena ou eram massacrados por eles, afora a apresentação de touro ou ursos treinados para violentar mulheres em público ou a alimentação pública de escravos de qualquer seita dissidente aos leões. Essa é a verdadeira tradição de animais em circos.
O circo moderno foi criado por William Cody, o ‘Buffalo Bill’, e essencialmente era uma representação de danças índias e lutas entre a sétima cavalaria ou caubóis com os pele-vermelhas. Não havia necessidade nem conveniência em arrastar animais enjaulados através de continentes. Após a morte de Cody os circos vieram a ter um contingente de animais, mas mesmo assim, na virada do século XIX ainda era raro o circo que dependesse mais de animais do que de bons entretenedores.
Isso pode ser visto inclusive na Rússia, que, assim como sempre dominou o mundo do balé com suas escolas, também dominou o mundo do treinamento de excelentes artistas circenses.
Devemos lembrar também que na época em que se arrastavam animais através de continentes, em jaulas, para exibi-los, fazendo-os habitar escaninhos exíguos, viajando em espaços mal ventilados, não tínhamos a facilidade de visitarmos zoológicos dadas as distâncias e o tempo de viagem, nem tínhamos os canais de televisão que nos mostram os animais em sua plenitude, livres, caçando e interagindo e se reproduzindo como hoje temos.
Creio que os saudosistas que insistem em animais nos circos, em farras do boi, caça às baleias (hoje completamente superadas como fonte de proteínas e de óleo para lamparinas) e outros costumes completamente ultrapassados pelo desenvolvimento humano talvez, em nome da tradição, consentissem em ser jogados aos leões num Circo Romano recondicionado.
Apenas em nome da tradição, é claro.
Ralph J. Hofmann”
Bom, eu só lamento a inclusão da passagem sobre os zoológicos, já que o resto me parece ter sido citado como algo pertencente ao passado. Mas tenho certeza que um bom esclarecimento vai puxar o autor ainda mais para o ‘nosso’ lado – já é bastante simpático aos “amigos da defesa dos direitos animais”, como encontrei em outros textos do mesmo autor. Pois a bicharada nos circos está precisando de ajuda de todas as partes, para se livrar dos ‘gigolonas’ – gigolôs das lonas, para citar outro texto que circula por email. Mas aí já é outra história.