Quando eu vi aquelas plantas, achei que estivesse num ambiente de outro planeta. Era tão diferente, não só a arquitetura das plantas, mas de todo o lugar. Parecia uma nanofloresta.” Geraldo Fernandes foi fisgado pela paisagem espetacular dos campos rupestres em 1980, quando estudava para se tornar biólogo, e desde então trabalha com esse ecossistema que poucos brasileiros conhecem. Pioneiro no estudo dos campos rupestres, Geraldo é professor titular de Ecologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências.
Seu interesse pelos insetos o levou a investigar as interações entre a fauna e a flora, lançando as bases para seu primeiro estudo de campo: câncer em plantas. Assim como humanos e animais, vegetais também desenvolvem células cancerígenas, com causas ligadas a temperaturas altas, menos água, falta de nutrientes, poluição e uma ampla variedade de organismos, principalmente insetos, como moscas e vespas, que manipulam geneticamente a planta para produzir o câncer do qual vão se alimentar.
Chamado de galha, nem todo tumor leva à morte da planta, e alguns são até bonitos, parecendo ornamentos ou flores, mas, “inevitavelmente, 90% das plantas que ocorrem nos campos rupestres têm um ou outro tipo de câncer”, afirma Geraldo. Isso se deve à própria localização desse ecossistema: o alto das montanhas. A forte radiação UV e a escassez de recursos geram estresse às plantas, e, com seu mecanismo de defesa debilitado, elas acabam mais suscetíveis ao desenvolvimento de tumores. O passar dos milênios, porém, propiciou que a vegetação evoluísse para se adaptar aos fatores de estresse, mantendo-se viva mesmo diante de adversidades.
Cobrindo apenas 0,78% do território brasileiro, os campos rupestres estão espalhados em 490 pontos pelo Brasil, principalmente nos estados de Minas Gerais e Pará, além de serras isoladas em Goiás, Mato Grosso, Roraima, entre outros, somando 83 mil km².
Caracterizados por grande riqueza de espécies herbáceas, alto endemismo e composições únicas de espécies, abrigam 15% da flora do país (5.700 plantas catalogadas) e mantêm uma das maiores taxas de endemismo de vegetação do mundo: 40% das espécies só existem lá. Na Cordilheira do Espinhaço, onde está a maior parte dos campos rupestres brasileiros, algumas famílias de plantas chegam a ter entre 80 e 90% de endemismo. E, mesmo após décadas de estudo, as descobertas continuam: entre 2005 e 2014, foram descritas 118 novas espécies de plantas e 26 de vertebrados, incluindo 11 sapos, oito lagartos, quatro pássaros, duas cobras e um mamífero.
O Espinhaço, a maior e mais antiga cadeia de montanhas do país, com 1,8 bilhão de anos de idade, se estende por 1.200 km entre Minas Gerais e Bahia. Os solos são compostos de quartzito e arenito, remanescentes de antigos fundos marinhos e desertos. A porção sul da cordilheira, no conhecido Quadrilátero Aquífero-Ferrífero, tem camadas de ferro, chamadas de cangas, assim como ocorre em algumas colinas da região de Carajás, no Pará, ambas originárias de antigos rios sedimentares ou bacias de lagos – o que torna os campos rupestres responsáveis pela formação de aquíferos que geram nascentes e abastecem rios.
Os solos desse ecossistema são muito pobres em nutrientes e têm alto teor de alumínio ou metais pesados. Essa condição, somada à exposição direta a ventos, chuvas e grandes variações de temperatura ao longo do dia, limitou o crescimento da vegetação e a sua distribuição geográfica. As plantas ainda precisam lidar com incêndios frequentes e com a herbivoria (consumo pelos animais), o que fez com que elas desenvolvessem certas características, além de comportamentos e relações com alguns animais, para conseguir sobreviver ao ambiente hostil – condição conhecida como resiliência ecológica. Existem espécies de ervas e arbustos, por exemplo, que desenvolveram órgãos subterrâneos especializados que permitem a sua rebrota repetidamente após sofrer danos, mantendo a planta viva. Algumas espécies de musgos e samambaias conseguem sobreviver até quase a secura total.
Existem desafios para a restauração ecológica, especialmente devido à remoção total do solo para extração de metais, mas grupos de pesquisa, movimentos comunitários e parcerias entre universidades e mineradoras estão em marcha para salvaguardar um dos ecossistemas mais biodiversos do mundo.
As possibilidades da restauração
“Durante muito tempo, acreditava-se que era impossível restaurar o campo rupestre pela única razão de que as plantas crescem num ambiente inóspito, então não seria possível cultivá-las em viveiros”, relata Fernando Augusto de Oliveira e Silveira, professor associado do departamento de Genética, Ecologia e Evolução do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. De acordo com o professor, esse discurso, que existia nas esferas governamentais, nas grandes corporações e no meio acadêmico, costumava ser usado como desculpa para não restaurar.
Em fevereiro deste ano, Fernando e colegas derrubaram esse mito com a publicação de um artigo afirmando que é possível propagar espécies do campo rupestre, e ainda usando tecnologias de baixo custo. A partir de testes com 117 espécies endêmicas, os pesquisadores comprovaram que é possível cultivá-las em condições usuais de viveiros, chegando a uma taxa de sucesso para 80% das plantas. “Agora não existe nenhuma justificativa plausível ou técnica para falar que não tem como restaurar campo rupestre”, defende o professor, que trabalha com o ecossistema desde 2000, quase todo o tempo visando à restauração.
O conhecimento sobre a germinação das espécies do campo rupestre vem sendo construído desde que Geraldo Silveira vendeu seu carro, em 1995, para montar uma estufa onde pudesse testar a indução de câncer em plantas. Em escala de laboratório, a propagação da vegetação já era possível, e foi o suficiente para os pesquisadores começarem a questionar o uso de espécies exóticas, como capim braquiária, para cobrir áreas degradadas em atendimento a condicionantes de licenciamento ambiental. “O grande desafio é produzir as mudas em larga escala e esclarecer os tomadores de decisão de que essa é a medida mais correta”, declara Geraldo.
As descobertas dos poucos pesquisadores especialistas no ecossistema, ao longo das últimas quatro décadas, levaram à publicação, em 2022, de um banco de dados gratuito sobre sementes do campo rupestre, com informações sobre genética de populações, criação e dispersão de sementes, dormência e germinação, entre outros aspectos, para 383 espécies endêmicas. Os pesquisadores também criaram uma relação de 10 princípios para restauração do ecossistema.
Outro resultado científico está no banco de sementes do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que abriga quatro espécies oficialmente ameaçadas. Em 2017, Fernando integrou um grupo de pesquisadores para estudar espécies que precisariam ser realocadas das cangas ferruginosas, em Carajás, onde uma mineradora iria operar. Como nenhuma espécie pode ser legalmente extinta por uma empresa, as plantas teriam que ser cultivadas e plantadas em outros locais. “Fizemos uma série de monitoramentos de floração e frutificação dessas quatros espécies e estudos de modelagem do nicho da planta, para saber dizer, num cenário futuro de mudanças climáticas, quais seriam os locais adequados para sobrevivência delas”, explica o biólogo.
Atualmente, na mesma região de Carajás, Fernando e colegas estão implantando um projeto de restauração com base em uma técnica inédita no Brasil: a transposição de solo superficial. Financiado pela mineradora, como medida de compensação obrigatória prevista na licença ambiental, o projeto destinou 36 caminhões de solo de uma área a ser minerada para outra em estado de degradação. Nessa técnica, que se provou a mais eficaz, segundo ele, os propágulos, sementes, esporos, fungos e microrganismos que existem no solo transposto vão auxiliar na regeneração da área degradada.
O método está sendo combinado com outras duas estratégias usadas na restauração de campos rupestres: o plantio de mudas e a semeadura direta. Existe também a técnica de transplante de órgãos subterrâneos das espécies, que seria uma forma de gerar resiliência para o ecossistema, mas ela nunca foi feita. Finalizada a fase da transposição de solo, a equipe agora está iniciando o monitoramento, e pelos próximos dois anos poderão avaliar como os diferentes tratamentos se comportam, para assim identificar quais são os melhores. O ideal seria um período maior de acompanhamento, pelo menos uma década, porque os processos no campo rupestre ocorrem de forma muito mais lenta do que em uma floresta.
“Se você deixar o ecossistema se restaurar sozinho, estima-se um período de 800 a 1.400 anos para ele voltar, mas nós não temos esse tempo, por isso precisamos fazer a restauração ativa, e com uma abordagem muito mais integrativa e funcional do que apenas jogar sementes”, avalia Fernando.
Outras regiões já foram e estão sendo restauradas pelos professores da UFMG, mediante determinações de órgãos ambientais e Ministérios Públicos. É uma conquista comemorada pelos pesquisadores, que há anos lutam contra a chamada reabilitação – ainda feita pela maioria das mineradoras, caracteriza-se pelo plantio de braquiária e eucalipto em áreas degradadas, o que não resolve problemas relacionados à biologia e à ecologia do campo rupestre. Apenas o pinta de verde.
Os impactos da mineração
Além da necessidade da assistência humana, outra limitação da restauração do campo rupestre que a mineração traz é o relevo. Áreas de alojamento de funcionários, que são planas, são mais fáceis de restaurar, mas, em vales cavados em busca de minério, é impossível recolocar uma parte da montanha. “É restauração entre aspas, porque conseguimos voltar com uma parte da biodiversidade, mas não com o ecossistema inteiro”, afirma Fernando.
A atividade minerária causa vários impactos diretos e indiretos. Uma das principais alterações do ecossistema é a destruição do lençol freático existente nas montanhas, que acontece especialmente durante a extração de ferro. No subsolo, o mineral atua como uma esponja, que, quando chove, retém a água. Durante a estação seca, a água do aquífero vai sendo liberada para a formação de corpos hídricos. Extrair o ferro significa retirar a esponja, então, na hora da chuva, a água não tem mais onde ficar armazenada, seguindo superficialmente morro abaixo.
A extração de ferro representa a maior parte da mineração feita no Brasil – em média, 61% dos compostos extraídos no decênio de 2015 a 2024, segundo dados da Agência Nacional de Mineração. Outro agravante para os campos rupestres: os dois principais estados onde a atividade ocorre são Minas Gerais e Pará, exatamente onde está localizada a maior porção do ecossistema.
“A grande questão da mineração é a mudança da paisagem”, diz Bruno Milanez, professor associado no departamento de Engenharia de Produção da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Citando o autor Eduardo Gudynas, ele diz que “a mineração é uma ‘amputação ecológica’, porque, assim como um membro amputado, a paisagem e as funções ecológicas não estão mais ali. E não há gestão ambiental que dê conta de devolver o que foi tirado”.
Além da alteração do ciclo hidrológico da região, que impacta o reabastecimento dos rios e, consequentemente, das cidades próximas, a mineração altera a qualidade do ar e consome muita água, podendo levar a problemas de escassez e contaminação hídrica. A fauna também é diretamente afetada, tanto durante a construção da mina quanto na operação, sendo obrigada a fugir ou sobreviver sob estresse, segundo o pesquisador. Os resíduos são igualmente preocupantes: o solo que não tem teor mineral suficiente vai sendo empilhado, e acaba pintado de verde com capim, enquanto o rejeito que sai da usina de beneficiamento é disposto em uma barragem, que corre o risco de romper.
Em termos sociais, explica o professor, a expansão mineral acontece especialmente em regiões rurais ou cidades do interior, gerando expectativa de especulação, desapropriação e aumento dos preços devido à chegada de mais pessoas, que podem ser de até 7 mil trabalhadores. “Geralmente homens, jovens, solteiros ou sem família, que vão viver em contêineres, ganhando um salário um pouco maior do que ganhariam na cidade, o que faz uma diferença para as possibilidades de consumo da região. Aumenta o abuso de álcool, a exploração sexual e a violência”, explica Bruno. Se houver comunidade tradicional no local a ser minerado, provavelmente será expulsa, gerando conflitos sociais.
A questão não é acabar com a mineração, reflete o pesquisador, mas não naturalizar a mineração feita de qualquer jeito e a qualquer custo. “Considerando todos os impactos que ela gera, precisamos pensar em quanto de mineração podemos fazer e como adequamos nosso modo de vida para sobreviver com a quantidade de minério que é possível tirar sem destruir o planeta nem afetar as pessoas que não têm nada a ver com isso.”
Estipular ritmo, escala e distribuição de renda são fatores essenciais para um modelo de mineração menos impactante e mais justo, de acordo com o pesquisador, inclusive para promover alternativas à própria mineração. É preciso ainda melhorar a implementação da lei e o monitoramento, combater o desperdício, ter uma política efetiva de reciclagem, redefinir padrões de produção e consumo e inserir na decisão as comunidades diretamente afetadas pelas minas, dando-lhes poder de veto. Esta, aliás, tem se mostrado uma ferramenta eficaz de proteção dos campos rupestres em Minas Gerais.
Cidadãos unidos em prol do ecossistema
Unidades de conservação são, por lei, áreas de exclusão de atividades que possam degradar o meio ambiente, como a mineração. A legislação prevê as de proteção integral, onde a interferência humana é mínima, e as de uso sustentável, que dependem do seu plano de manejo para barrar determinadas ocupações. Os cidadãos podem influenciar a criação dessas áreas, e vários casos semelhantes têm acontecido no Brasil com o objetivo de impedir a entrada de mineradoras.
Segundo o movimento Territórios Livres de Mineração, experiências bem sucedidas de resistência à atividade aconteceram nas cidades mineiras de Muriaé, Caldas, Santa Bárbara e Serro, além da Serra do Gandarela, e ainda em Anitápolis (SC), Projeto de Assentamento Agroextrativista Lago Grande (PA), Açailândia (MA), Projeto de Assentamento Roseli Nunes (MT), Santa Quitéria (CE) e São José do Norte (RS).
Na cidade mineira de Piumhi, na Serra da Canastra, área rica em campos rupestres, um movimento popular foi o responsável pela criação da APA Serras e Águas de Piumhi, uma Área de Proteção Ambiental com 12 mil hectares para preservação do território contra a mineração. O movimento se organizou em abril de 2023 em resposta às sondagens de três mineradoras na região, que buscavam explorar ferro, cromo e manganês nas serras onde nascem os mananciais, que abastecem 90% da população da cidade. Depois de reuniões, atividades como ciclismo e caminhada, audiências públicas, um abaixo-assinado com 70 mil nomes e estudos técnicos de biodiversidade para embasar a criação da APA, a Lei nº 2.767/2024 foi aprovada em setembro do ano seguinte.
“É um exemplo concreto de como a mobilização social, aliada ao conhecimento científico, pode influenciar positivamente o ordenamento territorial”, relata João Luís Lobo, botânico, advogado e atualmente diretor de Parques e Áreas Protegidas do município de Congonhas, no extremo sul da Cordilheira do Espinhaço. Pesquisador de mestrado na época, João participou do levantamento florístico feito na região para o projeto de lei, que revelou a diversidade de espécies nativas, algumas ameaçadas de extinção, e descobriu uma nova espécie de girassol.
“Experiências como essa reforçam de que não se trata de uma oposição entre desenvolvimento e conservação”, afirma João, “mas da necessidade de qualificar os processos de decisão sob um filtro do controle social, garantindo que diferentes formas de ocupação do território considerem seus limites ecológicos, sua diversidade social e seus valores patrimoniais.”
Entre as soluções que podem proteger os campos rupestres das diferentes ameaças, segundo o biólogo, está o cumprimento rigoroso da legislação, com a ampliação do conceito de prioridade de conservação, e o estabelecimento de um marco legal específico para os ambientes campestres, em especial os campos rupestres, que garantiria o reconhecimento jurídico claro para esse ecossistema.
É preciso também tornar os campos rupestres mais conhecidos. “Não se protege o que não se conhece. Valorizar esses ecossistemas exige que eles sejam reconhecidos como parte do patrimônio natural e cultural do país”, diz João, citando ainda atividades de geração de renda que mantenham os campos rupestres vivos, como turismo ecológico, produção artesanal de queijo [a exemplo do queijo canastra produzido em Piumhi], conservação ativa, programas de pagamento por serviços ambientais e a bioeconomia.
“Muitas espécies do campo rupestre possuem propriedades medicinais, aromáticas, ornamentais e alimentícias que, se manejadas de forma ética e sustentável, podem gerar produtos com alto valor agregado. Para isso, é preciso investimento em ciência, em redes de cooperação com comunidades locais e políticas públicas que incentivem essas cadeias produtivas”, esclarece. Na integração entre as pessoas e o seu meio, a vida prospera.
Fonte: UOL