Como o senhor traduz e explica o conceito de bomba biótica?
É simples e extraordinário: a floresta funciona como o coração do ciclo hidrológico. A explicação combina duas leis básicas da física: a primeira é Clausius-Clapeyron, que determina quanta água o ar pode reter em forma de vapor; a segunda é a dos Gases Ideais (PV = nRT), que relaciona pressão e volume com massa e temperatura do ar.
As árvores transpiram vapor d’água; em altitude, esse vapor esfria e condensa para formar nuvens. A condensação é a chave de tudo: a passagem da água do estado gasoso (vapor) para o líquido (gotículas de nuvem) causa uma abrupta redução de volume e, consequentemente, derruba a pressão atmosférica.
Essa queda de pressão cria um “vazio” parcial que funciona como um potente motor de sucção natural, puxando o ar úmido que está sobre o oceano para dentro do continente. Foi essa revelação que me fez entender como os ventos alísios do Atlântico Norte atravessam o Equador e são puxados para o interior da América do Sul: era a floresta que fazia isso.
Esse processo é ainda intensificado porque, junto com o vapor, as plantas emitem gases orgânicos —que eu chamo de “pó de pirlimpimpim”— que atuam como núcleos de condensação, facilitando e acelerando a formação de nuvens.
Ou seja, a floresta cumpre duas funções cruciais: libera o vapor e emite os compostos que o transformam em nuvens.
O mesmo ocorre na Sibéria: ali a floresta transpira o suficiente no verão para baixar a pressão e trazer umidade do mar Branco, contrariando a circulação dominante na Eurásia. É a floresta quem cria o clima que a sustenta.
E qual é a relação que o senhor faz entre suas descobertas e o pensamento de Davi Kopenawa?
Davi Kopenawa Yanomami questiona em “A Queda do Céu”: “Será que o branco não sabe que, se derrubar a floresta, a chuva cessa; e, sem chuva, não há o que comer nem beber?”.
Comparei esse saber indígena com os fundamentos científicos e encontrei uma correlação impressionante: a cultura yanomami já sabia, sempre soube, aquilo que levamos décadas, com toda parafernália científica, para começar a entender.
O mito de origem deles diz que isso aconteceu com a árvore de cacau, que segurou o céu…
Exato. A tradução física da sabedoria ancestral esclarece que na atmosfera, enquanto existem árvores, há movimentos ascendentes de ar úmido. Quando as árvores desaparecem, esse movimento cessa e o ar seco desce.
Isso corresponde exatamente ao saber do xamã yanomami, de que as árvores são pilares que sustentam o céu. Quando se retiram as árvores, o “céu desaba”: os ventos descem, as nuvens deixam de se formar e o ambiente fica árido.
Hoje é possível regenerar a floresta ou o desequilíbrio já eliminou essa possibilidade?
A vida tem poder de regeneração. A biosfera conquistou os continentes nos últimos 400 milhões de anos. Em outras palavras, a vida na Terra inventou mecanismos elaboradíssimos e competentes para reconquistar o que foi destruído.
A própria Arábia Saudita, que nos primórdios era um deserto, depois virou um “Jardim do Éden” e voltou a se tornar deserto pela ação humana, mostra essa dinâmica. Só que a natureza age lentamente, no tempo geológico.
Na amazônia, estamos repetindo os erros de outros povos: ao destruí-la, criamos as condições para um deserto. Se não agirmos, a circulação dos ventos mudará e a região secará além do ponto de não retorno. O essencial é que a sociedade entenda: não podemos permitir que poucos destruam nosso “berço esplêndido” que levou milhões de anos para se formar.
O que faz o desmatamento gerar um deserto?
Ao desmatar, quebramos a bomba biótica. O ar seco desce, impede a formação de nuvens e aquece ainda mais a superfície. Cria-se uma circulação continental “presa”, sem renovação de umidade. É o princípio físico da aridez.
Essa é sua referência ao “paquiderme atmosférico”?
Sim, uma consequência direta do desmatamento. E ajuda a explicar, por exemplo, por que a inundação no Rio Grande do Sul está ligada à devastação da amazônia. Como já disse, o “paquiderme atmosférico” é essa bolha de ar seco que desce e se instala sobre a região, criando uma circulação típica de deserto em grande parte da América do Sul, incluindo a amazônia.
Esse ar estaciona porque não há árvores suficientes para condensar o vapor e gerar os ventos capazes de romper a bolha de calor, o que acaba desviando a umidade acumulada além de suas bordas para onde não caberia.
As correntes que vêm do polo Sul e costumavam chegar a São Paulo deságuam em Porto Alegre?
Isso mesmo. Os rios voadores ainda circulam sobre áreas preservadas, como o Acre, o Amazonas, o norte do Pará, as Guianas, Venezuela, Colômbia, Peru e parte da Bolívia.
Mas, em regiões desmatadas, como Mato Grosso e mais da metade do Pará, além do Centro-Oeste e Sudeste, os rios voadores são barrados pelo “paquiderme atmosférico”.
Assim, essa umidade acaba se despencando, como ocorreu em 2014 e 2015, quando houve grandes enchentes no Acre e na Bolívia. E, ao encontrar frentes frias vindas do Sul, também barradas pelo paquiderme atmosférico, provoca chuvas massivas e inundações, como as que alagaram dois terços do Rio Grande do Sul.
Prevê outras enchentes semelhantes?
Muitas, possivelmente piores, entremeadas por longos períodos secos. Mas não quero falar só de desastre. A biosfera ao longo de 4,2 bilhões de anos, evoluiu mecanismos fascinantes para lidar com cataclismos. Nosso maior erro é não valorizar isso. É urgente parar de destruir a floresta amazônica.
Vivemos a disrupção da biosfera, que desde 2023 entrou em colapso, como numa falência múltipla de órgãos, o que explica esses eventos. Mas, se dermos à floresta a chance, ela pode curar o clima e a nós. A COP30 na amazônia pode marcar um avanço histórico nessa revalorização da floresta, por todos seus benfazejos e indispensáveis serviços ao clima.