Tradução Luna Mayra Fraga Cury Freitas
Algum medo é mais primitivo que aquele provocado pela ideia de prateleiras vazias nos supermercados? Algum alívio é mais primitivo do que o fornecido pelas comidas afetivas?
Ultimamente a maioria das pessoas tem cozinhado mais, documentado mais em fotos os momentos culinários e pensado mais em comida, em geral. A combinação da escassez de carne com a decisão do presidente Trump de ordenar a abertura de matadouros, apesar dos protestos de trabalhadores em perigo, inspirou muitos americanos a considerar, de fato, quão essencial é a carne.
A carne é mais essencial do que a vida dos empregados pobres que trabalham para produzi-la? Parece que sim. Surpreendente, seis em cada dez regiões que a própria Casa Branca identificou como zonas vermelhas de transmissão do coronavírus abrigam matadouros, reabertos por ordem do presidente Trump.
Em Sioux Falls, Dakota do Sul, a planta industrial de suínos Smithfield, que é responsável por cerca de 5% da produção de carne de porco do país, é uma das maiores zonas vermelhas do país. Uma fábrica da Tyson em Perry, Iowa, teve 730 casos de coronavírus — quase 60% de seus funcionários. Em outra fábrica da Tyson, em Waterloo, Iowa, houve 1.031 casos notificados entre cerca de 2.800 trabalhadores.
Trabalhadores doentes significam fábricas paralisadas, o que levou a um acúmulo de animais. Alguns criadores estão injetando abortivos em porcas grávidas. Outros estão sendo forçados a fazer eutanásia em seus animais, muitas vezes com tiros ou uso de gás. A situação já ficou tão ruim que o senador Chuck Grassley, um republicano de Iowa, pediu ao Governo Federal recursos de saúde mental destinados aos criadores de suínos.
Apesar dessa terrível realidade — e dos efeitos sobre as indústrias agropecuárias nas terras Americanas já amplamente divulgados, nas comunidades, nos animais e na saúde humana, muito antes da pandemia — apenas cerca de metade dos americanos diz que estão tentando reduzir seu consumo de carne. A carne está inserida em nossa cultura e em nossas histórias pessoais de maneiras muito importantes, desde o peru de Ação de Graças até o cachorro-quente nos estádios de beisebol. A carne vem com cheiros e sabores únicos e maravilhosos, trazendo uma satisfação que quase fazem-nos sentirmos em casa. E o que é mais essencial do que a sensação de estar em casa?
Ainda assim, um número crescente de pessoas sente a inevitabilidade da mudança iminente.
A pecuária já é reconhecida como uma das principais causas do aquecimento global. De acordo com o The Economist, um quarto dos americanos entre 25 e 34 anos dizem que são vegetarianos ou veganos, o que talvez seja uma das razões pelas quais as vendas de “carnes” à base de plantas, como as marcas Impossible Burgers e Beyond Burgers, dispararam e agora estão disponíveis em todos os lugares, desde a rede de supermercados Whole Foods até as lanchonetes White Castle.
Estávamos com as mãos na maçaneta, nos últimos anos. A Covid-19 arrombou esta porta. Pelo menos nos forçou a ver. Quando se trata de um assunto tão inconveniente como consumir carne, é tentador fingir que a ciência é inequívoca, encontrar consolo em exceções que nunca alcançariam grande escala e falar sobre o nosso mundo como se fosse teórico.
Algumas das pessoas mais conscientes que conheço encontram maneiras de não pensar nos problemas da agropecuária, assim como eu encontro maneiras de evitar pensar sobre mudanças climáticas e desigualdade de renda, sem mencionar os paradoxos na minha própria vida alimentar. Um dos efeitos colaterais inesperados desses meses de enclausuramento que estamos vivendo é que é difícil não pensar nas coisas que são essenciais para quem somos.
Não podemos proteger nosso meio ambiente enquanto continuarmos a comer carne regularmente. Esta não é uma perspectiva refutável, mas um lugar comum. Seja para fabricar hambúrgueres Whoppers (Burger King), ou gado “de boutique” alimentado com capim, as vacas produzem uma enorme quantidade de gases de efeito estufa. Se as vacas fossem um país, elas seriam o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.
De acordo com o diretor de pesquisa do “Project Drawdown” — uma organização sem fins lucrativos dedicada a elaborar soluções para enfrentar as mudanças climáticas — adotar uma dieta baseada em plantas é “a contribuição mais importante que cada indivíduo pode fazer para reverter o aquecimento global”.
A maioria esmagadora dos americanos já aceita a ciência das mudanças climáticas. A maioria dos republicanos e dos democratas diz que os Estados Unidos deveriam ter permanecido no acordo climático de Paris. Não precisamos de novas informações e nem de novos valores. Só precisamos entrar pela porta aberta.
Não podemos alegar que nos preocupamos com o tratamento humano dos animais enquanto ainda comemos carne regularmente. O sistema agropecuário do qual dependemos é tecido com sofrimento. Galinhas modernas sofreram tantas modificações genéticas que seus corpos se tornaram prisões de dor, ainda que abramos suas gaiolas. Os perus são criados para serem tão obesos que são incapazes de se reproduzir sem inseminação artificial. As vacas-mães têm seus bezerros arrancados deles antes do desmame, resultando em uma angústia aguda que podemos ouvir em seus lamentos e medir empiricamente através dos níveis de cortisol em seus corpos.
Nenhum rótulo ou certificação pode evitar esse tipo de crueldade. Não precisamos de nenhum ativista de direitos dos animais apontado o dedo para nós. Não precisamos nos convencer de nada que já não saibamos. Precisamos ouvir a nós mesmos.
Não conseguiremos nos proteger contra pandemias enquanto continuarmos a comer carne regularmente. Muitas atenções se voltaram às feiras de alimentos frescos, mas as fazendas industriais, especificamente as granjas, são um campo de reprodução ainda mais significativo para a produção das pandemias. Além disso, o CDC (Centro de Controle de Doenças americano) relata que três em cada quatro doenças infecciosas novas ou emergentes são zoonóticas – o resultado de nossa relação disfuncional com os animais.
Não é preciso dizer que queremos estar seguros. Sabemos como nos tornar mais seguros. Mas querer e saber não são suficientes.
Estas não são as minhas opiniões ou de outrem, apesar da tendência em publicar esse tipo de informações em colunas de opinião. E as reações às respostas mais comuns levantadas por qualquer questionamento sério sobre agropecuária não são opiniões.
Não precisamos de proteína animal? Não.
Podemos viver mais e mais saudáveis sem ela. A maioria dos adultos americanos come cerca de duas vezes a porção recomendada de proteínas — incluindo os vegetarianos, que consomem 70% a mais do que precisam. Pessoas que têm dietas ricas em proteína animal são mais propensas a morrer de doenças cardíacas, diabetes e insuficiência renal. Claro, carne, como bolo, pode fazer parte de uma dieta saudável. Mas nenhum nutricionista de renome recomendaria comer bolo com muita frequência.
Se o sistema de fazendas industriais entrar em colapso, os agricultores sofrerão? Não.
As corporações que falam em nome dos fazendeiros, enquanto os exploram, irão. Há menos agricultores nos Estados Unidos hoje do que havia na época da Guerra Civil, apesar de a população americana ser quase 11 vezes maior. Isto não é por acaso, mas sim um modelo de negócios. O modelo ideal do complexo industrial agropecuário é que as “fazendas” sejam totalmente automatizadas. A transição para alimentos à base de plantas e para práticas agrícolas sustentáveis criaria muito mais postos de emprego do que fecharia.
Não é preciso acreditar na minha palavra. Pergunte a um fazendeiro se ele ou ela ficaria feliz em ver o fim da agricultura industrial.
A redução do consumo de carne não é um movimento elitista? Não.
Um estudo de 2015 descobriu que uma dieta vegetariana é cerca de US$ 750 mais barata por ano do que uma dieta à base de carne. Nos Estados Unidos, a população não branca é a que menos se autodeclara como vegetariana, por outro lado, são as que mais sofrem com a brutalidade agricultura industrial. Os empregados dos matadouros, que atualmente estão sendo expostos a risco de contaminação para satisfazer nosso gosto por carne, são majoritariamente pardos e pretos. Sugerir que uma maneira mais barata, mais saudável e menos exploratória de agricultura é elitista é, na verdade, parte da propaganda da indústria agropecuária.
Não poderíamos trabalhar com as grandes corporações industriais para melhorar o sistema alimentar? Não.
Bem, a menos que você acredite que aqueles que se tornaram poderosos através da exploração destruirão voluntariamente os veículos que lhes concederam sua enorme riqueza. A agricultura industrial está para a agricultura real como os monopólios criminosos estão para o empreendedorismo. Se por um único ano o governo retirasse seus US$ 38 bilhões a mais em incentivos e resgates, e exigisse que as empresas de carne e laticínios jogassem pelas regras normais do capitalismo, isso os destruiria para sempre. Esta indústria não poderia sobreviver no mercado livre.
Talvez mais do que qualquer outro alimento, a carne provoca conforto e desconforto. Isso pode dificultar uma tomada de atitude no sentindo do que sabemos e queremos. Podemos realmente retirar carne do centro de nossos pratos? Esta é a pergunta que nos leva ao limiar do impossível. Do outro lado é o inevitável.
Com o terror da pandemia nos pressionando, e o novo questionamento sobre o que é essencial, podemos ver agora a porta que sempre esteve lá. Como em um sonho onde nossas casas têm quartos desconhecidos para nós mesmos quando estamos acordados, podemos sentir que há uma maneira melhor de comer, uma vida mais próxima de nossos valores. Por outro lado, não é algo novo, mas um chamado do passado — um mundo onde os agricultores não eram mitos, corpos torturados não eram alimento e o planeta não era o preço a se pagar na conta ao final da refeição.
Uma refeição após a outra, é hora de cruzar o limiar. Do outro lado está a nossa casa.
*Jonathan Safran Foer é o autor de “Eating Animals” e “We Are the Weather”. O jornal The New YorkTimes está empenhado em publicar uma diversidade de cartas ao editor.
Artigo publicado originalmente no The New York Times no dia 21 de maio de 2020 com o título “The End of Meat Is Here”.