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RESGATES

Chegada da primavera aumenta número de animais recebidos nos Cetras

O número de animais recebidos nos Cetras aumenta na época da primavera, quando muitos animais, principalmente aves, estão em período reprodutivo.

16 de outubro de 2024
Alice Soares de Oliveira
6 min. de leitura
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Filhote de gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita) – Foto: Elisete Maialu Giacomin de Lima

O segundo semestre nos centros de triagem e reabilitação de animais silvestres (Cetras) é marcado por um aumento significativo no número de animais recebidos. Isso ocorre com a chegada da primavera, que coincide com o período reprodutivo de diversas espécies, resultando em um grande fluxo de filhotes. Esse período de maior demanda, chamado de “alta temporada”, vai de meados de setembro até o final de janeiro.

Os filhotes resgatados recebem cuidados especiais no berçário, um setor dedicado exclusivamente ao atendimento desses animais, o que exige muita dedicação e superação de desafios. Os animais que inauguram a alta temporada no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (Cemacas) da prefeitura de São Paulo são os gambás-de-orelha-preta (Didelphis aurita), que, por sinal, também é a espécie que nos despede desse período, finalizando com a sensação de dever cumprido e certo alívio para o enfrentamento de um novo ciclo.

­­­­­­­­­­­­­­­Dentre os filhotes mais recebidos, podemos citar o gambá-de-orelha-preta, o bem-te-vi (Pitangus sulphuratus), a corujinha-do-mato (Megascops choliba), o irerê (Dendrocygna viduata), a rolinha-roxa (Columbina talpacoti), a avoante (Zenaida auriculata), o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris), o andorinhão-do-temporal (Chaetura meridionalis), o sanhaçu-cinzento (Thraupis sayaca), o marreco-caboclo (Dendrogygna autumnalis) e o urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus).

Temporada 2024: ovos

O início da temporada de filhotes de 2024, diferentemente dos anos anteriores, foi marcada pelo recebimento de ovos de aves silvestres, alguns juntos com seus ninhos, como os de beija-flor, bem-te-vi, anu-branco e um aguardando identificação. Assim que recebidos, realizamos o exame de ovoscopia no intuito de garantir que o ovo está viável e com o embrião vivo, além do monitoramento constante de temperatura e umidade e movimentação dos ovos.

As espécies mais atendidas no Cemacas são justamente as que possuem mais habilidade de frequentar o ambiente periurbano, se expondo mais aos riscos da urbanização: predação por animais domésticos (cães e gatos), colisão em estruturas como vidraças, atropelamento, eletroplessão (choque elétrico) e, infelizmente, maus-tratos. Por isso, muitos filhotes são resgatados por serem órfãos.

Há ainda o resgate realizado pelas pessoas quando se deparam com filhotes de aves que estão treinando ou iniciando o voo: as pessoas acreditam que o animal esteja abandonado ou apresentando alguma debilidade (visto que seu voo ainda não é completo), mas os treinos de voo são realizados sob supervisão dos pais! Assim, é muito importante obter orientação antes de realizar um “resgate” desnecessário.

Os primatas geralmente nos despertam uma atenção diferenciada. Um caso marcante foi o recebimento de um macaco-prego (Sapajus sp.) órfão e que estava sendo alimentado com refrigerante e bolacha. O grande desafio foi ensiná-lo a se alimentar de maneira adequada; um processo longo e acentuado pela falta de autonomia alimentar dele.

Rotina intensa

Durante a alta temporada, o número de refeições diárias administradas ultrapassa 450. Em um dia típico, a equipe se organiza em turnos para preparar diversos tipos de alimentação (como papas, sucedâneos e potes de frutas); realiza a limpeza e ambientação dos recintos; cuida da limpeza das penas e pelagem dos filhotes; confecciona ninhos de papel para as aves recém-saídas do ninho; higieniza seringas e outros utensílios; faz a pesagem dos animais e monitora, registrando todos os procedimentos realizados.

Ainda em relação aos desafios, podemos citar a grande diversidade de espécies recebidas, uma média de 60 a cada temporada, e o recebimento de animais em diferentes estágios de desenvolvimento. Para cada fase evolutiva, há cuidados específicos relativos à regulação de temperatura, ambientação, tipo e forma de administração do alimento.

Aves da família dos anatídeos, como irerês e marrecos-caboclos, mesmo sendo monitorados com frequência de 10 vezes ao dia, o índice de mortalidade é bastante superior se comparado aos filhotes de gambás, quando no estágio inicial de desenvolvimento. As aves desse grupo, recebidas com peso médio de 20 gramas, permanecem por meses no berçário até serem aptos para a reabilitação, com peso médio de 500 gramas.

Por tudo isso, a maior dificuldade na manutenção desses animais envolve, dentre outras, o número de pessoas que se dedicarão exclusivamente a essa tarefa. Grande parte dos animais necessita de uma alta frequência alimentar, o que envolve períodos de restrição de sono e disposição para acordar cedo por parte da equipe.

Outro grande obstáculo envolve o cuidado de filhotes de mamíferos, pois pode ocorrer o imprinting (processo de identificação do animal no começo de sua vida com outros seres) com seres humanos devido à proximidade ente eles e a pessoa que o alimenta. Isso prejudica a reabilitação desses espécimes.

Mamíferos como o ouriço-cacheiro (Coendou spinosus), o caxinguelê (Sciurus aestuans), o bugio (Alouatta guariba clamitans) e a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) muitas vezes chegam aos centros de reabilitação ainda com os olhos fechados, necessitando de alimentação, aquecimento e estímulos para defecar e urinar, o que exige um contato humano mais próximo e frequente.

Alguns cuidados como o uso de máscaras durante a alimentação (que, inclusive, é um equipamento de proteção individual essencial para a biossegurança), evitar falar e manusear desnecessariamente os animais (por exemplo, a alimentação deve ser fornecida ao animal no seu próprio recinto, minimizando o contato direto) são algumas das medidas que ajudam a evitar o desenvolvimento de comportamento humanizado, e com isso, há maiores chances para a reabilitação e soltura.

Pensando na reabilitação, alguns procedimentos são adotados já no berçário, como a coleta de folhas nas áreas verdes para ofertar aos animais folívoros (herbívoros que se alimentam de folhas, como ouriços, preguiças e bugios), o início de treino de voo, a ambientação dos espaços com poleiros diversos (fixos, móveis, de diferentes alturas, diâmetros e textura distintas) e a manutenção de animais em recintos externos para aclimatação (após início do desenvolvimento de pelagem ou empenamento).

Algoritmo dos animais humanizados

Nas redes sociais, há um intenso apelo pela humanização de animais silvestres, sobretudo filhotes. Isso é algo extremamente negativo para a conservação da fauna, uma vez que incentiva a compra desses animais e, consequentemente, o tráfico de fauna. Essa cultura de humanização promovida pela mídia, ao invés de sensibilizar as pessoas para a causa ambiental, distorce o verdadeiro propósito da conservação.

As imagens e os vídeos mais compartilhados são justamente aqueles que expõem filhotes trajando roupas ou tomando mamadeira no colo. Para cada imagem dessas, haverá pessoas dispostas a caçar uma mãe e roubar o seu filhote na natureza ou retirar centenas de aves dos ninhos, para que sejam vendidos – se tiverem sorte, sobrevivem (e de que forma?).

No dia 10 de setembro, foram recebidos dois filhotes de papagaios-verdadeiros (Amazona aestiva) provenientes de apreensão do tráfico realizada pela Primeira Delegacia do Meio Ambiente da cidade de São Paulo (DPPC). As aves, ainda sem penas e com os olhos fechados, foram recebidas no Cemacas às nove e meia da noite, sendo prontamente acolhidas em ambiente apropriado, com temperatura e umidades controlados.

Apesar dos percalços e preocupações, é muito gratificante quando conseguimos acompanhar o desenvolvimento do filhote. Em 10 de outubro, um mês depois do recebimento, é nítida a evolução desses animais: as penas estão em fase de crescimento, eles estão alertas, empoleirando e se principiando no voo…

O acompanhamento dos filhotes e seu processo de reabilitação, visando um eventual retorno à vida livre, é longo, desafiador e nem sempre resulta em um final feliz. As pessoas deveriam ser estimuladas a observar a fauna em seu ambiente natural, promovendo um melhor entendimento das funções dos animais nesse ambiente e do quanto os estamos privando de exercerem essas funções e seus comportamentos quando são retirados do seu hábitat.

A fauna silvestre ausente implica diretamente na sobrevivência do ecossistema e, consequentemente, na sobrevivência da espécie humana. Essa interdependência deveria ser amplamente reconhecida e mais divulgada.

Fonte: Fauna News

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