O fogo voltou a rondar o coração do Cerrado. Nas últimas semanas, o Território Kalunga, o maior território quilombola do Brasil, viu parte de sua vegetação nativa e de suas áreas produtivas virar cinzas. Foram mais de 100 mil hectares queimados na Chapada dos Veadeiros (GO), atingindo pastos, áreas nativas e nascentes. O prejuízo não é apenas ambiental, é humano, cultural e ancestral.
O que estamos vendo no Cerrado não é um caso isolado. Biomas que antes praticamente não queimavam, como o Pantanal e a Amazônia, hoje enfrentam incêndios recorrentes, ano após ano. Isso não é coincidência, é sintoma. Sintoma de um clima que está mudando, de biomas cada vez mais vulneráveis, de um país que sente de forma direta os efeitos da crise climática global. O aumento da temperatura média, a redução das chuvas e a alteração dos ciclos hídricos criam um cenário perfeito para que pequenos focos de fogo se transformem em grandes incêndios.
Para os povos e comunidades tradicionais, como os Kalunga, o impacto é profundo. O fogo destrói os quintais produtivos, ameaça as sementes crioulas e as sementes nativas usadas na restauração, devasta os campos onde se colhe o sustento e apaga parte da memória viva do território. Quando o Cerrado queima, queima também a esperança de um futuro para um bioma já tão ameaçado.
Entretanto, o Cerrado também nos ensina que o fogo nem sempre é vilão, ele também pode ser um aliado.
Muito antes de a ciência moderna falar em “manejo”, povos e comunidades tradicionais já dominavam o uso do fogo como ferramenta de cuidado com a terra. Esse conhecimento ancestral deu origem a práticas utilizadas para preparar roças, renovar pastagens naturais, proteger áreas sensíveis e manter o equilíbrio da biodiversidade.
Com a criação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF), esse modo de fazer passou a ser reconhecido oficialmente como parte essencial das estratégias de gestão das paisagens brasileiras. Mais do que isso, a PNMIF evidenciou o potencial das comunidades nas situações em que o fogo deixa de ser aliado, como nos incêndios que atingiram recentemente a Comunidade Kalunga do Vão do Moleque.
A partir dessa política, brigadas comunitárias foram criadas com apoio de projetos locais, como é o caso da brigada formada por coletores de sementes da Associação Cerrado de Pé. E o resultado já se viu na prática, os brigadistas, formados ainda no meio do ano, foram fundamentais no combate ao incêndio no Vão do Moleque.
São pessoas do território, que conhecem o chão que pisam, as veredas, as rotas da fumaça e os ventos que sopram. São elas que defendem, com o corpo e o saber, o patrimônio natural e cultural que ainda resiste.
O que esses brigadistas fizeram nos últimos dias é admirável. Foram verdadeiros heróis, e isso nos faz refletir que, se os incêndios tendem a se tornar mais frequentes, como tudo indica, precisamos de mais brigadas comunitárias, mais investimento em formação local e em infraestrutura para prevenção. E, acima de tudo, precisamos ouvir as comunidades e incorporar seus conhecimentos às estratégias de adaptação climática.
O fogo do Cerrado sempre existiu. O que mudou foi sua intensidade, sua frequência e o contexto em que ocorre. Hoje, ele queima em um planeta mais quente e desigual, onde os territórios que mais conservam são também os que mais sofrem.
É urgente reconhecer que lidar com o fogo é também lidar com as mudanças climáticas, com as políticas de terra, com a desigualdade e com a justiça ambiental. O Cerrado pede socorro, mas também oferece caminhos. Cabe a nós decidir se vamos seguir apenas apagando incêndios ou aprender, com quem vive nele, a conviver e cuidar para que o fogo não se transforme em destruição.
Fonte: Brasil de Fato