O Centro de Controle de Zoonoses da Prefeitura de Sete Lagoas, em Minas Gerais, está sendo acusado de matar cachorros, através do procedimento de morte induzida, que poderiam receber tratamento médico após diagnóstico de leishmaniose. Denúncias feitas pela médica veterinária Maria Paula Ferrari indicam que até mesmo cães sem sintomas da doença foram mortos.
A repercussão da denúncia fez com que as entidades Direito Animal Brasil (DABRA) e Sociedade Mineira Protetora dos Animais (SMPA) decidissem recorrer à Justiça. Conforme divulgado pela DABRA através de nota, o órgão municipal estaria indo à casa dos cidadãos e exigindo que seus cães fossem tratados apenas com o medicamento Milteforan – de alto valor no mercado – sob pena de entregarem seus animais ao município para que fossem submetidos à morte induzida, mesmo que os cachorros estivessem com acompanhando médico veterinário e adotando outras formas de tratamento. Caso os moradores se recusassem a entregar os cachorros, o órgão municipal estaria denunciando-os ao Ministério Público com exigência de pagamento de altas multas.
Diante da ilegalidade do caso, não restou outra saída senão propor uma Ação Civil Pública, conforme explicou a advogada da DABRA, Brenda Sampaio. O processo é movido pelas associações Direito Animal Brasil e Sociedade Mineira Protetora dos Animais.
Segundo a advogada, um caso semelhante ao de Sete Lagoas foi julgado pelo Tribunal Regional Federal da Terceira Região, que determinou a suspensão da matança de animais com leishmaniose. Apesar da decisão, proferida pelo desembargador Johonsom Di Salo, a liminar foi derrubada após recurso. Conforme pontuado pelo magistrado, “o sacrifício indiscriminado de cães, animais obviamente inocentes, afetados pela Leishmaniose Visceral Canina, é uma das indecências que o ser humano comete em ‘nome’ de uma suposta preocupação com a saúde pública”. “Na verdade a causa maior dessa zoonose é a incúria, o descaso, a incompetência do próprio Poder Público em erradicar as áreas de sujeira que infestam nossas cidades – em detrimento das populações mais pobres – , sendo que o Poder Público tenta ‘disfarçar’ sua inépcia no setor do saneamento básico autorizando e acoroçoando o holocausto dos pobres animais que são apenas vítimas da doença”, afirmou o desembargador.
Animais saudáveis “na fila da morte”
De acordo com a nota divulgada pela DABRA, no último dia 12 de agosto a situação dos animais retirados de suas casas pelo CCZ ficou ainda pior, conforme demonstrado em um vídeo recebido pela médica veterinária Maria Paula Ferrari no qual “animais saudáveis sem sintomas” teriam sido registrados “na fila da morte”. Numa tentativa de salvá-los, a veterinária iniciou uma campanha de adoção para os cães e prometeu tratamento adequado para cada um deles, caso estivessem de fato adoecidos pela leishmaniose. “A veterinária confirma ter conseguido tutores para os 10 animais que apareciam nos vídeos, junto com a documentação para que pudesse adotá-los e dar destino aos exames e tratamentos necessários. Contudo, ao chegar ao CCZ para entregar os documentos, o portão encontrava-se trancado com a presença da Guarda Municipal, onde os funcionários disseram que sua entrada no órgão público estava proibida naquele dia (12)”, pontua a instituição.
“Maria Paula começou a pedir ajudar às autoridades, através das redes sociais, o que fez com o que o vereador Júnior Sousa (MDB) fosse para o local, também sendo impedido de acessar o órgão público. Imediatamente, a Polícia Militar foi acionada para que um Boletim de Ocorrência pudesse registrar o ocorrido”, completa a nota, na qual é informado que, com a chegada da PM, policiais entraram no CCZ e confirmaram que os dez cachorros haviam sido submetidos ao procedimento de morte induzida.
Na última sexta-feira (13), um dia após os animais terem sido mortos, a prefeitura promoveu uma coletiva de imprensa por meio da qual a gerente do CCZ, a veterinária Patrícia Silveira, afirmou que a ordem para impedir a entrada do vereador Júnior e dos ativistas, que foram ao local após as denúncias de Maria Paula, partiu de um promotor do Ministério Público e teve como objetivo preservar a integridade do espaço e dos funcionários. Nesta segunda-feira (16), também foi marcada uma reunião entre o prefeito Duílio de Castro (Patriota) e o deputado federal Fred Costa (Patriota), que entrou em contato com Castro após tomar ciência dos fatos ocorridos contra os cães.
Indignados com as ações praticadas pelo CCZ, manifestantes se reuniram na Praça da Prefeitura na manhã desta segunda-feira e realizaram um ato pacífico para defender o direito à vida dos cachorros diagnosticados com leishmaniose.
Leishmaniose: tratar ao invés de matar
A Leishmaniose Visceral Canina ou Calazar é uma doença causada por protozoários do gênero leishmania com formas variadas de transmissão aos cães. Dentre elas, através da picada do flebótomo, conhecido popularmente como mosquito-palha, ou por meio da vida sexual e vertical, na qual a transmissão se dá de mães para filhos.
Na América Latina a doença já foi descrita em pelo menos 12 países, sendo que 90% dos casos ocorrem no Brasil, conforme publicação do manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral do Ministério da Saúde – o mais recente foi publicado em 2014.
A leishmaniose é uma zoonose, ou seja, uma doença infecciosa transmitida entre animais e pessoas, razão pela qual é submetida à uma vigilância epidemiológica promovida pelo Ministério da Saúde por meio dos centros de controle de zoonoses, os chamados CCZs.
Muito embora não seja a única espécie infectada pela doença, a dissidência em cães acaba sendo o foco de maior atenção por parte dos CCZs em decorrência da proximidade com os humanos. Por essa razão, há centros que ao recolherem ou receberem estes animais promovem o teste para atestar a contaminação, optando pelo procedimento de morte induzida sem premissa de tratamento. Em contraponto, existem unidades mais atualizadas, cientes de que esta conduta não reduz a incidência da doença.
Pesquisadores e profissionais da medicina veterinária defendem que a leishmaniose não seja sinônimo de morte e relembram que o Brasil é o único país do mundo que adota esta prática contra os animais como justificativa para controlar a endemia. Conforme pontuado pela médica veterinária Flávia Ferreira, a causa verdadeira dos números ainda altos para a leishmania advém da falta de políticas públicas que impeçam a transmissão por meio de normas consistentes de prevenção como controle ambiental, castração, encoleiramento com repelente, e a própria vacina já existente.
Os veterinários também chamam a atenção para o fato de existirem protocolos de tratamento mais acessíveis financeiramente com eficiência no controle da doença nos cães e ratificam que o tratamento deverá ser determinado sempre pelo grau de evolução da doença no organismo do animal. Entretanto, uma instrução normativa do Ministério da Saúde, por meio da Portaria 1426, datada de 2008, levantou questão oposta ao sugestionar como único medicamento apropriado para o tratamento da leishmaniose no território brasileiro o fármaco Miltefosina, cuja fórmula comercializada no país recebeu o nome de Milteforan, com exclusividade de fabricação do laboratório Virbac. A partir desta instrução, todos os demais tratamentos não estariam reconhecidos como válidos pelos agentes públicos, como os controles de zoonoses, por exemplo, gerando extrema controvérsia por conta das publicações científicas, dos estudos realizados por especialistas e dos veterinários que lidam diariamente com o diagnóstico e o tratamento da doença.
Membro da DABRA, a advogada animalista Dra. Brenda Sampaio reforça que as regras jurídicas estabelecidas no ordenamento jurídico que garantiriam os direitos e a dignidade dos animais tornam a portaria inconstitucional. “A ilegalidade da Portaria Ministerial já foi amplamente discutida e reconhecida pelo Respeitável Tribunal Regional Federal da 3º Região, nos autos do Acórdão 12031 do Estado do Mato Grosso do Sul, processo número 00012031-94.2008.4.03.60000, de Relatoria do Ilustre Juiz Convocado David Diniz, da 4º Turma. Em seu voto, o Desembargador pontua que ‘resta claro, com base no aludido arcabouço normativo, que ao veterinário é que cabe decidir acerca da prescrição do tratamento aos animais, bem como quanto aos recursos humanos e materiais a serem empregados. A portaria, ao vedar a utilização de produtos de uso humano ou não registrados no competente órgão federal, viola os referidos preceitos legais e, por consequência, indiretamente, a liberdade de exercício da profissão, prevista no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, assim como o princípio da legalidade, que conta do inciso II. 6. A Portaria n.º 1.426 revela-se ilegal, ainda, por afrontar a legislação protetiva do meio ambiente, especialmente a Lei n.º 9.605/98, que tipifica, dentre os crimes ambientais, aqueles que são cometidos contra a fauna, e também a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada em assembleia da Unesco, em Bruxelas, no dia 27 de janeiro de 1978, que regulamenta a matéria no âmbito internacional, e que foi recepcionada pelo nosso sistema jurídico. 7. A proteção dos animais em relação às práticas que possam provocar sua extinção ou que os submetam à crueldade é decorrência do direito da pessoa humana ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no inciso VIIdo § 1º do artigo 225 do texto constitucional. 8. A Constituição Federal, a Declaração de Bruxelas e as leis de proteção a fauna conduzem-se no sentido da proteção tanto da vida como contra os maus tratos. A vedação de medicamentos usados para humanos ou dos não registrados para aliviar ou evitar a doença em causa, desde que prescritos por quem de direito, representa séria violação e desrespeito aos estatutos mencionados. Os seres vivos, de maneira geral, e os animais em particular, juntamente com os demais elementos que compõem a eco esfera, constituem o planeta Terra. Nada mais é que um organismo vivo, que depende para sua existência da relação equilibrada da fauna, da flora, das águas dos mares e dos rios e do ar. Somente tal compreensão pode garantir a existência das gerações futuras. Disso decorre a responsabilidade que cada um tem com o meio-ambiente. Pouco apreço pela vida ou por aquilo que a pressupõe significa descomprometimento com o futuro. Sabemos como reproduzir a vida, não como a criar efetivamente. Aquele que desmerece os seres com os quais tudo tem sentido atinge nossa identidade e perdeu ou não adquiriu a essência do que se chama humano. Por isso, é muito grave a edição da portaria de que se cuida nos autos. Produz a concepção de que os seres humanos desconsideram o cuidado necessário ecológico pelo qual somos responsáveis’. Destaco, ainda, que a matéria também já foi tratada no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no ano de 2017, pontuando sobre a flagrante ilegalidade da Portaria, que extrapola seus limites de regulamentação”, concluiu a advogada.