Por Patricia Viale
via blogdaviale.blogspot.com
Fair Soares não é mulher de meias palavras. O que tem de ser dito, ela diz. E o que tem de fazer, ela faz. À frente da ONG Chicote Nunca Mais, organização não-governamental, sediada em Porto Alegre (RS), que busca combater a crueldade existente no universo carroceiro, cavalo carroça. Esta tríade, aparentemente inofensiva, é cenário de horrores praticados em vias públicas. Como se estivéssemos nos tempos medievais, onde maus tratos, espancamento e morte eram cometidos à luz do dia, sem constragimento algum. Em pleno ano de 2011 constata-se que a violência, seja contra quem (pessoas ou animais) foi totalmente banalizada. Convivemos muito bem com isto. Fair Soares e seus seguidores fazem o alerta: direitos existem, legislação existe e eles estão com gana de fazer valer.
A ação da Chicote Nunca Mais é minimizar o sofrimento dos animais que puxam as carroças de catadores, geralmente de lixo, na zona urbana. Eles oferecem gratuitamente assistência veterinária, tratamento e recuperação aos ‘cavalos do asfalto’, com atendimento domiciliar e formação do vínculo entre carroceiro e cavalo. Também atuam no recolhimento dos eqüinos, vítimas de maus tratos ou abandono, buscando judicialmente a punição dos culpados.
Ao ser questionada por que lutar pelos cavalos de carroça, Fair é enfática e direta: “Porque é medievalidade o que fazem com os cavalos, na frente das autoridades constituídas. Ao meu ver, o povo constroí a cidade onde quer viver. Construção envolve trabalho, mesmo que esse trabalho seja não calar diante da barbárie. Se eu me calar vou viver num Estado bárbaro. Sinceramente, não é isso que eu quero para as futuras gerações. Hoje se constrói o amanhã e quem cala consente! A população anda como se os cavalos fossem invisíveis, por absoluta covardia. Os covardes é que fazem aumentar a violência nos centros urbanos. Cavalo é campeiro e temos que exigir que fiquem no campo. Enquanto admitirmos o relho, que é crime, o espancamento, que é crime, a sobrecarga, até a exaustão do cavalo, estaremos admitindo todo tipo de violência social”. Fair destaca que este descaso com os direitos dos animais, por uma vida digna, abre espaço para outras violências.
Esta mulher de 62 anos, nutricionista e professora aposentada, nascida e moradora de Porto Alegre, agora presidente da Chicote Nunca Mais, ama a vida e dedica a sua pelo bem estar social. O resgate da vida a emociona. “Isso não tem preço”, completa ela. E Fair poderia enumerar centenas de histórias que viveu entre pessoas e animais.
olha a Fair trabalhando!
Cabe recordar que uma carroça não é somente um cavalo. Não é o cavalo que escolhe ser puxador de carroça. Quem escolhe o cavalo é o carroceiro, que escolheu esta vida ou por falta de algo melhor, ou por opção mesmo. “Estes dias estava conversando com um casal de carroceiros, que moram em Alvorada (RS). Eles me disseram que não iriam trabalhar em outra profissão porque ganhariam menos e o trabalho é mais pesado. A esposa do carroceiro era cozinheira num restaurante. Preferem a informalidade porque têm liberdade”, narrou Fair. A ONG desenvolve o projeto Resgatar, junto aos carroceiros. “Nele vamos atender o cavalo na casa do carroceiro. Levamos veterinário, ração e medicamentos. Trabalhamos o vínculo cavalo/carroceiro. Nós acreditamos que quem conhece, não maltrata. Porém tem gente muito cretina e oportunista”, completa a presidente da ONG.
resgate de um cavalo caído na rua por exaustão e maus tratos
Esta mulher, que odeia a covardia e gosta de chocolate, foi pensar pela primeira vez na morte quando seu marido faleceu. “Era alguém que estava na minha geração, até porque casei com meu melhor amigo, para não ter muito trabalho (ela ri). Pai e mãe não dão essa sensação de fim, de morte, parece distante”, comenta ela. Medo da vida não tem não. “Estou pronta para tudo, menos para perder meus filhos. Não sou melhor que as outras mães, porém tenho pedido a misericórdia divina”, confessa Fair.
Então, o que assusta esta mulher? “A politicalha, a falta de ética e a corrupção instalada na maioria da classe política. Vergonha e moral viraram privilégios de poucos e não podemos esquecer que eles fazem as leis do país”.
O dia-a-dia desta vegetariana, que condena o radicalismo, é “trabalho, trabalho e trabalho. Eu respiro e durmo a Chicote. Que tem me dado as maiores alegrias e obviamente, as maiores tristezas. Choro e rio sem pudor…”, admite.
Fair tem duas grandes amigas que cuidam dela. “De um tempo para cá tenho tomado chimarrão, diariamente, por conta de duas grandes amigas. Se estou com muito trabalho elas trazem o chimarrão para me desconcentrar…” e também conta que relaxa indo ao cinema e ao teatro. Mais ao cinema que ao teatro.
Em tempos de fortalecimento do Terceiro Setor (entidades, associações e ONGs trabalhando como e para a sociedade civil, assumindo deveres do Estado, como educação, saúde, bem estar social), a ONG vive de doações de pessoas físicas e dos produtos que vende como as agendas.
Agenda da Chicote Nunca Mais, à venda no site
São cerca de oitocentos participantes divididos entre divulgadores (a grande maioria), colaboradores que fiscalizam e informam sobre tudo que ocorre com cavalos e depositários fiéis (que cuidam dos cavalos resgatados). ”Essa rede é muito importante, Fizemos um representação judicial e em 3 dias coletamos 500 assinaturas. Isso é muito significativo. O dinheiro é curto, mas nunca ficamos sem pagar as contas. A mobilização é maciça. Temos muito orgulho e respeito por nossos amigos. Neste ano vendemos agendas para todo o Brasil”, explica Fair. Quando questionada se os órgãos públicos ajudam com recursos financeiros, a resposta dela é direta. “Não! Eles se ajudam mutuamente”.
Para ajudar a ONG é possível entrar no site (www.chicotenuncamais.org) e comprar uma agenda, ou apadrinhar com ração, fiscalizar depositários fiés, ser caroneiro, “Estamos aceitando clientes para espaço de propaganda no blog (http://chicotenuncamais.blogspot.com), com hospedagem mínima de um mês. Tem muitas maneiras de ajudar”, adianta a presidente.
A denúncia de maus tratos é legitimada por lei. E a pena é detenção de três meses a um ano, mais multa. Apesar disto, as barbaridades continuam acontecendo com o testemunho de uma sociedade inteira. “Segundo informação que nos repassaram, cada cavalo puxa em torno de meia tonelada, por carroça. Os cascos são o grande problema destes animais, que são ferrados de maneira incorreta. Esses animais sofrem muito! Já fizemos um curso de casqueamento junto aos carroceiros, ministrado pelo SENAR, e patrocinado pelo Sindicato Rural. Em relação à quantidade de água que os cavalos ingerem por dia, o correto, quando está calor e puxando a carroça, é dar água a cada hora. Porém os carroçeiros são pessoas ignorantes e acham que o cavalo não pode beber água suado. É uma credice! Os animais caem de exaustão e de sede. Engraçado é que nunca vi um carroceiro não tomar água e se manter até cair de sede. Olha que a situação deles é privilegiada, porque vão em cima da carroça. Na sua maioria são analfabetos e metido a machão.Isso dificulta a comunicação”, revela Fair emocionada.
“Os animais são tratados com capim ralo e pobre em nutrientes; milho, que desmineraliza os ossos e os deixa suscetíveis às fraturas. Aliás, o que tem de cavalo quebrado é impressionante. Muitos comem a comida podre, que carroças retiram dos restaurantes, o que é proibido. Mas quem cumpre a lei?”, completa Fair.
A protetora adianta que está na hora de rever conceitos e opiniões. Diz que carroceiro não é coitadinho. “Eles não vivem mal. Eles moram mal”, acrescenta ela. “As famílias já não são numerosas. Eles têm em média quatro filhos. O senso 2010 mostrou isso. As famílias mais jovens tem menos filhos. Eles fumam, bebem cerveja, fazem churrasco. Todos ou quase todos tem celular. Obviamente, que tem os que não gostam de trabalhar, que são alcoolistas ou drogados, há também os que se aproveitam da falta de fiscalização para cometer atitudes ilícitas”, completa Fair.
Aquele mesmo casal, de Alvorada, que optou por ser carroceiro, adiantou para Fair que não queriam ter cavalo, mas um carrinho elétrico, que sai mais barato que o animal. Fair participou de uma reunião da Associação dos Catadores do Bairro Cavalhada, onde falaram que o custo para carregar a bateria de um destes carros é de 7 reais por mês mês, com capacidade para carregar uma tonelada de material. Em Jaguariaíva (PR), a prefeitura adquiriu cinco carrinhos elétricos para utilização dos catadores de recicláveis no município.
Fair se queixa da falta de vontade política. Alternativas para os problemas existem. “O contribuinte paga muito caro pelo imposto do lixo, e os cavalos têm, como pagamento por uma vida de trabalho, a covardia da fome e do abandono por parte de seus proprietários, e também das autoridades, que têm obrigação legal”.
Nem sempre a ONG consegue ter um final feliz. No caso do cavalo Valente, a luta foi grande, mas a morte foi inevitável. “Estávamos em quatro, o Veterinário Chico tentando salvar a vida do animal e nós ajudando, socorrendo de várias maneiras com soro, levantando o cavalo, dando banho no bicho e etc. Foi um dia exaustivo e depois o cavalo morre. Fiquei inconsolável”, conta Fair, que ainda acrescenta “O Divino, ajudante do Veterinário Chico disse: “Dona Fair nós não fazemos milagre e o estado em que ele chegou para nós, só milagre salvava”. Vi que realmente não ganhamos todas, porém, não iremos desistir. Nosso lema é aliviar o sofrimento. Quando um bicho morre sem dor, sem fome, sem sede, estamos aliviando o sofrimento”.