Quem circula por Porto Alegre de olhos abertos, vendo além do que o comodismo e a passividade permitem enxergar, vai reparar em um grande número de carroças costurando becos, ruas e avenidas da Capital. Não são carroças romantizadas, como muitos fazem força para acreditar, comparando-as com as charretes turísticas de Nova York, parisienses ou mesmo aquelas perdidas nas memórias da infância, na zona rural. A realidade, há muito, já asfaltou o bucolismo de quem ainda sonha acordado.
Pois é justamente a infância o período mais ultrajado dentro desse caldeirão de forças e dominação chamado ‘carroças em Porto Alegre’. A opção de ver, ou não, fica por conta de cada um, o que não modifica a verdade no ritmo das pálpebras. Quem transita percebe que cerca de um terço das carroças está sendo conduzida por um menor de idade, criança ou adolescente. E pelo menos a metade carrega junto ao condutor alguém que com certeza jamais ouviu o termo ‘Estatuto da Criança e do Adolescente’, mas sabe bem que não tem opção senão juntar lixo dia após dia.
Um menor de idade conduzindo um automóvel pelas ruas de Porto Alegre seria rapidamente interceptado pelos órgãos competentes, e no dia seguinte estaria nos jornais. Mas se o veículo que este mesmo menor conduz – e muitos estão mais próximo dos 10 anos do que dos 18 – não possui sinalização, cinto de segurança, freios nem estabilidade mínima, então todos fazem vista grossa. Desde o motorista de ônibus ou taxista, com sua contumaz boca-suja e impaciência frente aos demais condutores, até os agentes de trânsito. No empurra-empurra caótico das vias urbanas, haja habilidade para manejar um cavalo magro e uma carroça cheia de sacos pretos. Prudência? Experiência? São palavras que não constam nesse ‘Código de Trânsito’ versão ‘jeitinho brasileiro’, que tanto corrói as estruturas do país.
Tais crianças e adolescentes são alvo de muita conversa e intermináveis debates nos seminários e conferências da vida. Na teoria, todos têm uma preocupação especial com os menores, todos se escandalizam com notícias sobre crianças trabalhando pesado na China ou na África, mas aliviam-se de qualquer peso na consciência ao achar que é uma caridade permitir que uma criança prossiga trabalhando como carroceira. Ninguém defende uma situação dessas, em tese, mas dentro de uma visão preguiçosa e covarde, opta pelo ‘deixar tudo como está’ – sem antes deixar de passar um verniz de colaboração caridosa a um problema social.
Falar sobre o estrago feito a uma criança no momento que ela é obrigada a trabalhar já foi feito por gente mais gabaritada e especializada no assunto, e a legislação específica existe. Exercer uma função que não dá horizontes sociais, é duplamente cruel, como se o carroceiro adulto tivesse propriedade também sobre o futuro de seus filhos, condenando-os a ser apenas carroceiros, e ainda se conformar com isso. Diz o ECA que aos menores de 18 anos “é vedado o trabalho noturno, perigoso, insalubre, penoso, realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social”. Parece ser uma descrição da atividade realizada por crianças e adolescentes em Porto Alegre, de boné e chinelo de dedo. Mas são crianças invisíveis.