Era final de tarde, no dia 14 de setembro, quando Dona Marilene, moradora da comunidade Boqueirão no bairro de Nordeste de Amaralina em Salvador (BA), escutou chamarem seu nome à porta. Eram três pessoas trazendo um cãozinho baleado em necessidade de socorro urgente.
Trocas de tiro entre polícia e traficantes na comunidade não são novidade para os moradores. Outros animais e pessoas já foram feridas nesses confrontos. Também não são incomuns essas visitas à casa de Dona Marilene, protetora de animais e conhecida da comunidade, os moradores recorrem a ela quando animais em situação de rua precisam de ajuda.
Ao ver a situação do cãozinho, com o olho (local do tiro) cheio de bichos e repleto de sangue seco, a protetora não teve outra saída senão acolhê-lo. Marilene é uma pessoa simples, diarista, 49 anos, tem três filhos e cuida de 30 cães e 12 gatos. “Quando eu vi o bichinho naquele estado, com o olhinho cheio de bicheira, não me contive e mesmo não podendo, botei ele pra dentro de casa”, conta ela.
Os moradores que trouxeram o animal até Marilene contaram que ele estava há quase uma semana jogado no “pistão”, uma espécie de via de acesso à comunidade, e depois do tiro acreditavam que ele estava morto, foi uma senhora que passava que ouviu os gemidos e constatou que o cão vivia.
Preocupada com o estado do cãozinho que só gemia e não se alimentava, Marilene então, temendo o pior e com recursos escassos, pediu ajuda a sua amiga, Jussara Coelho. Jussara, também protetora, 59 anos, bancária, já ajudou Marilene em outros casos semelhantes, postando em redes sociais, arrecadando e administrando ajuda financeira e fazendo a intermediação junto às clinicas veterinárias. As duas se conheceram no meio da proteção animal.
Em busca de socorro
As protetoras foram juntas até a Pet Shop Petlândia da Dra. Márcia Albuquerque, veterinária parceira que sempre as ajuda nos casos mais complicados. A veterinária fez o primeiro atendimento, prestou os primeiros socorros, limpou o ferimento de Davi, retirou os fragmentos do projétil que o atingiu, o medicou para dor, porém reconhecendo que o caso era cirúrgico e requeria internação imediata, a veterinária pediu que as protetoras procurassem uma clínica que tivesse estrutura para esse tipo de procedimento.
“Ele chegou muito debilitado, o cheiro que emanava dele era muito ruim, havia muito tecido necrosado, fragmentos do projetil espalhados pelo rosto dele e o globo ocular estava irrecuperável”, conta a veterinária.
Aviso: imagens fortes
Jussara teve anteriormente, em diversos casos, experiências com outras clinicas, todas se negando a receber animais em situação de rua das mãos de protetores para confiar em um pagamento futuro proveniente de doações que ainda estão por vir e podem até não acontecer.
Felizmente o Dr. Fernando Oliveira da clínica Diagnovet comovido com a história do animal, aceitou receber Davi. O veterinário tem sempre ajudado Jussara e Marilene em casos graves recebendo os animais para pagamentos futuros.
O tratamento
Foram duas cirurgias realizadas pelos veterinários Dra. Ercy Bono cirurgiã plástica e odontológica e Dr. Raphael Libório anestesista, ambas foram um sucesso. Davi tinha exposição óssea, e como os tecidos estavam necrosados pelo ferimento causado no trauma inicial, uma miíase se instalou levando a necessidade de retirada desses tecidos mortos (músculos, pele, ossos) e colocação de enxerto por meio cirúrgico. Infelizmente Davi perdeu um olho, porém enxerga normalmente com o outro.
A veterinária responsável pelo caso de Davi, Dra. Ludmila Chaar, afirma que o animal poderá ter uma vida normal, apenas com cuidados especiais em relação à sua gengiva, que ficou exposta e terá que ser sempre lubrificada artificialmente, com manteiga de cacau ou óleo natural. Daqui a alguns meses provavelmente o cãozinho passará por nova cirurgia para cobrir sua gengiva, conta a veterinária.
“Davi é um guerreiro, grande parte de sua recuperação se deu em função da vontade dele de sobreviver”, afirma Dra. Ludmila, que confessa ter se apaixonado pelo cãozinho e só não o adotou por já ser tutora de dois pitbulls que poderiam estranhar o novo companheiro.
Doações do país todo
Com a repercussão do caso, e a divulgação nas redes sociais, Davi começou a receber ajuda de todas as partes do país. Jussara criou um grupo de whatsapp para acompanhamento e doações relacionadas ao caso e foi com surpresa e alegria que ela conta esse momento: “As pessoas se sensibilizaram com o caso e tivemos doações de todos os valores. Cada um ajudava com o que podia”.
“Este guerreirinho mexeu comigo, não acredito que tenha passado por tanta coisa e sobrevivido, ele realmente lutou pela vida”, confessa a protetora emocionada.
Final Feliz
Davi ainda está internado e se recuperando mas sua previsão de alta é dia 06 deste mês. E depois de tanta dor e sofrimento, seu final feliz parece estar próximo, pois de dentro do próprio grupo de Whatsapp criado para ele, surgiu uma adotante: Maria das Graças.
Maria das Graças é médica aposentada, mora na mesma cidade do ocorrido e possui 5 gatos. Ela conta que depois que perdeu de forma abrupta sua companheira canina, Lupita, em julho deste ano, não quis ter outro cão. Lupita tinha 13 anos e morreu de infarto fulminante ainda dentro da clínica, após receber alta de sua última internação.
Mesmo ainda em luto por Lupita, Graça se sensibilizou pela história de dor e superação de Davi e isso a levou a abrir seu coração novamente e recebê-lo em sua família.
Quando questionada sobre o porquê de ter adotado Davi ela responde de forma simples: “É que quando vi o olhar de Davi, não pude resistir. Fiquei imaginando como deve ter sido a vida dele na rua. Quando chove à noite eu fico pensando nesses bichinhos desamparados…Se pudesse ficava com todos”.
Segundo as protetoras e veterinários citados nessa matéria não são raros os casos de animais atropelados, baleados e feridos em confrontos entre polícia e traficantes na comunidade do Boqueirão. Salvador não possui hospital público veterinário, os protetores, com recursos escassos e sem ajuda do estado ou prefeitura, contam com o apoio de clinicas e veterinários para os casos mais graves.