Quem convive com um cão sabe: muitas vezes, ele parece perceber mais sobre nós do que nós mesmos. Surge um desconforto, e o amigo de quatro patas se aproxima, lambe a mão ou fixa o olhar, como se dissesse que “algo não está bem”. Mas essa sensibilidade vai além da afeição: ela pode tocar o nível biológico e físico desses animais.
A produção brasileira da Netflix, “Caramelo”, exemplifica essa dinâmica. Na trama, o chef Pedro, vivido por Rafael Vitti, recebe um diagnóstico inesperado e, em meio à crise, conhece um cão vira-lata da cor caramelo que o auxilia a redescobrir a vida. O filme rapidamente ganhou alcance global, figurando entre os Top 10 em dezenas de países e sendo apontado como o título brasileiro de maior alcance internacional na plataforma até então.
“No filme Caramelo, a sensibilidade do cachorro vai além da convivência, ele percebe a doença do tutor antes mesmo do diagnóstico. Essa abordagem revela, de forma delicada, a profunda conexão entre humanos e animais, algo que nós, veterinários, observamos diariamente. Eles captam alterações sutis em nosso comportamento, odor e energia, muitas vezes refletindo nosso estado físico e emocional. O filme traduz o que a ciência já confirma: os animais são capazes de perceber e reagir a mudanças fisiológicas em seus tutores, reforçando o vínculo afetivo e o papel sensível que exercem em nossas vidas”, afirma Andressa Alves, médica-veterinária e supervisora de Auditoria na Plamev.
Os cães possuem um olfato extremamente apurado. Quando o organismo muda, seja por um tumor, crise metabólica ou dor iminente, o corpo libera compostos orgânicos voláteis. Alterações químicas no corpo humano, como variações hormonais, metabólicas ou marcadores de doença, podem aparecer de forma “invisível”, por meio do hálito, suor, urina e pele. Alguns cães conseguem detectar essas mudanças precocemente.
“O nariz ‘humano’ tem cerca de seis milhões de receptores, enquanto dos cães pode passar de trezentos milhões, dependendo da raça. Raças farejadoras, como beagle e pastor alemão, estão no topo dessa média. E é exatamente por isso que eles não veem o que sentimos: eles cheiram o que sentimos”, explica Andressa.
Além do olfato, os cães respondem a alterações no comportamento, no ritmo respiratório e na energia emitida pelos tutores. Essa combinação de sensibilidade física e emocional permite que, às vezes, o animal “antecipe” sinais que o organismo ainda não manifestou plenamente ou que nós mesmos não percebemos.
Caramelo leva essa ideia para o grande público: um vira-lata comum se torna protagonista de uma história de superação, vínculo e cura. A narrativa reflete uma realidade prática: o trabalho de cães de assistência médica ou terapêutica explora essa sensibilidade, seja na detecção de crises epilépticas ou no apoio emocional a pacientes oncológicos.
Para veterinários e tutores, a mensagem é clara: mais do que companhia, os cães são parceiros com quem compartilhamos estados físicos e emocionais. Quando percebem uma mudança, seu comportamento pode ser um convite para “olhar para dentro”. E, para quem assiste ao filme, essa história evidencia que a relação vai além do clichê do “cachorro fiel”, pois envolve ciência, instinto e afeto genuíno.
Fonte: O Globo