Um grupo de cachorros-do-mato usou por vários dias consecutivos o viaduto vegetado construído sobre a BR-101 e, assim, pôde ultrapassar a rodovia em segurança. Imagens dos animais silvestres fazendo a travessia foram divulgadas pela Associação Mico Leão Dourado e reforçaram a importância do licenciamento ambiental, que está sob ataque por conta do Projeto de Lei 3729/2004. Aprovada na Câmara, a proposta que aguarda para ser analisada pelo Senado flexibiliza o licenciamento e prejudica iniciativas como a que garantiu um local seguro para a travessia dos cachorros-do-mato.
Através das redes sociais, o biólogo e consultor em políticas socioambientais André Aroeira denunciou mais uma vez os ataques ao licenciamento ambiental e listou motivos que fazem dele uma ferramenta de suma importância para a preservação da natureza, incluindo dos animais que morrem atropelados em rodovias.
Ao divulgar as imagens dos cachorros-do-mato utilizando o viaduto vegetado (confira ao final da reportagem), Aroeira mencionou ainda que, “em breve, quando as árvores crescerem, os micos-leões-dourados também vão poder alcançar a reserva biológica de Poço das Antas, de onde foram praticamente extintos pela febre amarela”. Segundo ele, os relatos colhidos a respeito das mais de 30 passagens de fauna aéreas e subterrâneas indicam sucesso da estratégia, que as câmeras agora registram com a presença dos cachorros-do-mato no local.
“É um dia muito feliz para todo mundo que trabalhou tantos anos pelos mecanismos de mitigação da obra. Protejam o licenciamento! A AMLD é a responsável pelo monitoramento do uso da estrutura pelos micos e pela preguiça-de-coleira. Mas estamos monitorando toda a fauna da nossa sede, o futuro Parque Mico-Leão-Dourado, refúgio que fica na outra ponta do viaduto. A equipe de monitoramento é composta pelos biólogos Priscila Lucas e Mateus Melo e o fotógrafo Luiz Thiago de Jesus. O monitoramento tem apoio da DOB Ecology. Parabéns a todos os envolvidos: ICMBio, Ministério Público Federal, IBAMA, Autopista Fluminense e UENF”, escreveu Aroeira no Twitter.
O biólogo aproveitou a oportunidade para lembrar que o licenciamento ambiental segue sob ameaça “depois de depredado pela Câmara e agora está tramitando no Senado sob relatoria da senadora Katia Abreu”. “Não vamos deixar de pressionar”, orientou.
Ao abordar o caso específico da BR-101, o especialista mencionou que a rodovia vai do Rio de Janeiro até Campos, ao Norte do estado fluminense, e atravessa florestas que abrigam os últimos 200 micos-leões-dourados que resistiram ao massacre dos traficantes de animais.
“Em meados de 2013 a população de micos havia se recuperado para uns 3 mil animais graças a um esforço premiado mundialmente. Foi quando resolveram duplicar a BR-101 para melhorar o trânsito da capital ao norte do estado, como as imagens mostram a partir de 2013”, escreveu Aroeira, que pontou ainda que, caso o PL 3729/2004 se torne lei, “bastaria passar o trator e meter o asfalto, como o era quando fizeram a rodovia, que rasgou o habitat do mico no meio”. “O novo texto diz que, se o empreendimento já existe e vai ser ‘apenas reformado’, não é preciso avaliar impactos”, explicou.
O biólogo comentou ainda sobre o caso da BR-319, que não foi asfaltada porque atravessa um dos últimos blocos intactos de floresta do planeta. “É um desastre humanitário para populações tradicionais tanto quanto o é a crise de Covid em Manaus. É talvez a última fronteira da Amazônia”, escreveu. Segundo ele, o fim do licenciamento ambiental é uma “encomenda que grileiros fizeram ao relator Neri Geller” porque eles querem “que as rodovias na Amazônia sejam asfaltadas sem avaliação de impacto para que se estabeleçam tapetes vermelhos aos invasores de terras públicas”.
“A BR-101 com pista única já era um problema, mas ela foi construída muito antes de a Constituição e o CONAMA exigirem o licenciamento. Assim como bebês nasciam sem cérebro em Cubatão por conta da poluição de indústrias que operavam sem regras. Então vieram os pesquisadores apontar o óbvio: um macaquinho de 600g não atravessa 4 faixas de pista com canteiro central. E olha: o mico precisa loucamente atravessar essa rodovia se quiser continuar existindo daqui 50 anos”, lamentou.
“Um dos maiores problemas de conservação que atormenta os pesquisadores é o isolamento dos grupos de macacos. Eles vivem em grupos familiares. Os novos miquinhos precisam migrar e fazer família com outros jovens de outros grupos. Se os micos não têm como acessar a floresta dos outros grupos de miquinhos, vão fazer família com quem? Com a irmã? O primo? É um óbvio problema de endogamia que reduz a variabilidade genética e habilidade dos animais de sobreviverem. Com tão poucos micos, pode ser fatal”, completou.
Aroeira lembrou ainda que, há dois anos, um surto de febre amarela eliminou 90% dos micos que viviam na Reserva Biológica Poço das Antas, área conhecida como o mais importante refúgio da espécie. Desde então, 30% de todos os micos desapareceram. “Hipótese: como há baixa diversidade genética, todos têm perfil imunológico parecido e são vulneráveis ao mesmo problema. Então era científico: 1) o mico precisa aumentar sua diversidade genética para continuar existindo em longo prazo 2) o mico precisa atravessar 3) a rodovia duplicada vai criar uma barreira intransponível para sempre. Mas como levar a ciência do mico até uma obra de trânsito? Vocês já sabem: licenciamento ambiental”, comentou.
De acordo com o biólogo, o licenciamento exigiu um diagnóstico detalhado dos impactos ambientais, o que permitiu que pesquisadores e organizações como a Associação Mico Leão Dourado pudessem passar a intervir formalmente para subsidiar a discussão. “Mas não foi um processo fácil”, asseverou. “A empresa dizia que o viaduto era caro demais. Em outras palavras: a rodovia só é viável se extinguir o mico-leão-dourado. Cabe perguntar: a rodovia não é, portanto, inviável? É a pergunta fundamental que o licenciamento sempre põe na mesa”, continuou.
“No fim, o que todo mundo já sabia: era mentira. O viaduto custou 9 milhões e será pago pelos usuários da rodovia com acréscimo de frações de centavos no pedágio, como deve ser. Não existe almoço grátis, mas também não existe mico-leão-dourado grátis. O licenciamento ainda está amadurecendo no Brasil, vagarosamente cria padrões, jurisprudência, precedentes. Começou a incomodar quem sempre esteve acostumado a fazer obras sem controle social, sem dados científicos e sem racionalidade”, reforçou Aroreira.
Segundo ele, além do viaduto, a duplicação da BR-101 exigiu mais de 30 dispositivos de transposição em cordas, cabos, pequenas pontes e túneis. “Pesquisadores vão monitorar as passagens diuturnamente. Entender a eficiência e uso pelos animais será crucial para resolver o problema histórico”, afirmou.
No entanto, se a eficácia dos viadutos vegetados agrada os defensores do meio ambiente, causa temor em quem não tem a preservação ambiental como premissa de atuação. “O medo de que as passagens de fauna sejam case de sucesso e virem moda fez o impensável acontecer: a Autopista Fluminense esconde o mico-leão-dourado. Não tem placa na rodovia, site, nem aquele tradicional greenwashing de quem só investe em ações ambientais porque é obrigado”, lamentou Aroeira.
Veja os cachorros-do-mato utilizando a passagem de fauna da BR-101:
Lembram de quando contei como o licenciamento ambiental obrigou à construção de um viaduto vegetado sobre a BR-101 para a passagem de fauna?
Boas notícias! Flagramos um grupo de cachorros-do-mato usando o viaduto para atravessar com segurança por vários dias consecutivos. pic.twitter.com/N04r3ZYYfk
— Aroeira 🌿 (@andrearoeirap) August 20, 2021