Fotos de animais silvestres mortos e dicas de caça estão sendo compartilhadas por caçadores nas redes sociais. A prática criminosa atenta contra a preservação da fauna e gera desequilíbrio nos ecossistemas.
Conforme denunciado por reportagem do jornalista João Fellet, da BBC News Brasil, a maior parte dos grupos foi criada a partir de 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro, defensor da caça, publicou decretos que reduzem as restrições ao acesso a armas por parte de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores, os CACs.
Dentre os grupos está o “Caçadores de paca”, com 74 mil membros, que caçam não só as pacas, mas também veados, tatus, jacarés, capivaras, quatis, mutuns, queixadas, onças e outros animais. De acordo com a BBC, que ingressou no grupo, internautas compartilham centenas de vídeos de caçadas e fotos de animais mortos, parte delas expondo o rosto do caçador nas imagens. A exploração de cachorros, exposto a riscos ao serem forçados a encurralar animais silvestres durante a caça, também é exposta no grupo.
Casos de cães prejudicados pelas caçadas, como um cachorro que morreu ao ser picado por uma cobra e outro que ficou com os olhos feridos ao ser forçado a encurralar um animal silvestre, também são relatados no grupo, que ainda serve como espaço para compartilhamento de informações sobre armas. Para piorar, no caso do cão com ferimentos nos olhos, um membro do grupo recomendou espremer limão sobre as feridas. “No outro dia está bom, já curei muitos assim”, disse.
Por conta dessas publicações, que violam regras do Facebook por retratarem ou promoverem a violência física contra animais, a rede social retirou o grupo do ar após ser questionada pela BBC News Brasil.
As publicações também estão presentes em comunidades no YouTube, criadas nos últimos dois anos. Dentre elas, os canais “FAL CAÇADOR”, “só do mato caçador”, “Caçadores Anônimos”, “Pedrinho caçador sniper” e “Alemão CAÇADOR!”. O último, com 40 mil inscritos, divulga dicas de caça. O dono do canal defende a legalização da prática.
“Aqui podia ser regulamentado caçar com responsabilidade, mas não é”, afirma Alemão em um vídeo com mais de 160 mil visualizações no qual ele descreve a caça de um veado mateiro. “Sou criminoso desde criança, porque eu caço desde pequeno mais (com) meu pai. Nós ‘caçava’ de cachorro, fazia arapuca. Então, para mim, era meio de vida, era sobrevivência. E hoje eu caço porque eu gosto, eu gosto demais disso aqui”, conta.
No final do vídeo, o corpo do veado morto é exposto, amarrado a um galho pelo pescoço. A publicação, com 600 comentários, é repleta de elogios. “Não tem coisa melhor no mundo do que estar numa rede e escutar o bicho chegando na espera. Para quem gosta… Você esquece todos os problemas”, comenta um usuário identificado como Marcelo Chumbão.
“Faço das suas as minhas palavras, cresci vendo meu pai caçando e pescando para sobreviver… Caçar com responsabilidade é o que precisamos”, escreve outro usuário.
Caça ao javali
Por não ser uma espécie nativa, o javali tem caça liberada no Brasil. Trazido ao país, ele se tornou vítima de um problema criado pelos humanos responsáveis por sua migração e que agora tentam resolver a questão condenando o animal a sofrimento e tirando sua vida.
O problema, porém, vai além do javali. Isso porque, conforme explicou à BBC News Brasil o biólogo Gustavo Figueirôa, a liberação da caça ao javali pode ter impulsionado a matança de outros animais. Segundo o especialista, muitos caçadores que têm permissão para matar os javalis acabam tirando a vida de outros nas animais encontrados durante as caçadas.
A facilitação do acesso a armas, de responsabilidade do governo Bolsonaro, também prejudicou os animais. Isso porque o medo de serem presos por porte ilegal de armas reduzia a ação de caçadores.
“Naturalmente, se você permite que mais pessoas tenham armas legalmente e saiam a campo para caçar legalmente (javalis), você aumenta a chance de mais animais silvestres serem caçados”, afirmou Figueirôa.
Com os decretos de Bolsonaro, houve um aumento de 50%, em relação a 2018, no número de registros ativos de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores (CACs), segundo o Instituto Sou da Paz. Atualmente, os CACs podem adquirir até 30 armas, 90 mil munições e 20 kg de pólvora. Antes de Bolsonaro, a permissão era para 12 armas, 6 mil munições e 2 kg de pólvora por pessoa.
O biólogo comentou ainda o argumento de que há animais aos montes na natureza e que, por isso, é aceitável matá-los. Segundo ele, espécies com populações numerosas em parte do país podem estar ameaçadas em outros locais – como acontece com a paca, que é considerada abundante por caçadores, mas que está em risco em biomas como a Mata Atlântica.
Além disso, matar o animal prejudica o ecossistema no qual ele vive. Um exemplo é a cutia, que dispersa sementes, mantendo a biodiversidade da floresta. A cadeia alimentar da fauna também é afetada. Se cotias são mortas, por exemplo, onças passam a ter menos presas para se alimentar.
“Quando você mata um animal que é presa de outros, você tira um elemento da cadeia que desequilibra todo o resto”, afirmou o biólogo, que contou à BBC News Brasil que já denunciou ao YouTube e ao Facebook grupos que promovem a caça, mas não teve retorno positivo.
E apesar de ter removido o “Caçadores de paca”, o Facebook mantém outros grupos similares em sua plataforma. O YouTube, por sua vez, disse que é “uma plataforma de vídeo aberta, e qualquer pessoa pode compartilhar conteúdo, que está sujeito a revisão de acordo com as nossas diretrizes da comunidade”.
Na opinião do Ibama, “a exposição de conteúdos relacionados à caça de animais silvestres no YouTube e Facebook tem forte impacto negativo para a preservação ambiental, pois estimula a caça”.
“Cotidianamente, o órgão acompanha as denúncias presentes nas redes sociais e atua com base nelas, investigando os responsáveis”, completou o órgão.