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CRUELDADE LEGALIZADA

Caçadores movimentam grupos de mortes de animais silvestres abastecidos com munições vendidas por CACs

15 de outubro de 2024
8 min. de leitura
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Foto: Reprodução

A adrenalina se mistura com a tensão e, então, o animal sai da mata enquanto é perseguido por quatro cães. Em meio ao barulho de latidos e grunhidos, dois tiros de espingarda. O animal se livra do primeiro projétil, mas cai com o impacto da segunda bala, enquanto é abocanhado pela matilha. O resultado? Uma caçada bem-sucedida.

A cena descrita parece até um corte de filme, mas foi gravada e compartilhada em grupos de caça de animais silvestres nas redes sociais, que variam entre 105 a 49 mil membros. Nos espaços também é possível adquirir munição para a prática com Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs).

Durante um mês, a reportagem do Jornal Opção acompanhou e negociou com caçadores e CACs de vários estados do Brasil, inclusive de Goiás. Tudo foi registrado e entregue aos órgãos competentes.

Por lei, CACs podem adquirir munição para uso próprio desde que tenha licença para utilizar o calibre, mas a revenda é vetada, sendo considerada tráfico (veja detalhes abaixo). A caça de animais silvestres, por outro lado, é regulamentada no Brasil apenas quando se trata de questões científicas e de subsistência.

Outro tipo de caça legalizada se refere ao controle biológico de espécies invasoras, isto é, exóticas, que proliferam descontroladamente e passam a ameaçar espécies nativas. Neste caso, apenas o javali e as subespécies dele, como o javaporco, conforme o promotor João Pedro Costa Soares, titular da 3ª Promotoria de Justiça de Porangatu.

“Para praticá-la, é preciso permissão para portar arma de fogo, além de licença do órgão ambiental, que é o Ibama. Se o Ibama determinar que em determinada região houve infestação de determinada espécie, ele pode editar a regulamentação. Porém, atualmente, apenas o javali é classificado como uma espécie invasora com a população fora de controle”, explicou.

Foto: Reprodução

As leis, no entanto, estão longe de serem seguidas pelos caçadores identificados pela reportagem – cujos goianos são atuantes principalmente na região sudeste, conhecida pela quantidade de lavouras. Durante as enxurradas de publicações nos espaços coletivos e privados, foi possível identificar a caça de ao menos seis espécies distintas do javali, sendo: caititu, veado, capivara, paca, tatu e até búfalos.

[Este último, cuja cada individuo pode chegar a uma tonelada, foi alvo de turismo clandestino em um safári ilegal localizado pelo Ibama em uma fazenda de Monte Alegre de Goiás, no nordeste do estado, na região da Chapada dos Veadeiros. Os caçadores acabaram sendo alvo de operação da Polícia Federal (PF), em 2023. No entanto, não são apenas os grandes animais que são alvos dos “predadores”.

“Olhai ai, galerinha. O tatuzinho é foda, tá se cagando todo. Cavou fundo, aqui. Olha os cachorro ai. Vai correr não. Tchau, ‘brigado’”, afirmou um caçador, enquanto se filmava segurança um tatu-folha, também conhecido como tatu-galinha, na companhia de ao menos dois cães. O vídeo foi compartilhado no grupo “Caçadores de Tatu”, espaço privado que conta com 51,4 mil membros, no dia 22 de junho de 2024.

As fotos e vídeos de animais mortos, capturados ou agonizando após serem baleados, diariamente divulgadas pelos caçadores, escancaram a atividade criminosa. Como uma espécie de prêmio e para carimbar a veracidade da caça – para não ser considerada a famosa “história de pescador” – eles também expõem a própria imagem ao lado dos animais.

Bem armados, os caçadores posam ao lado dos animais, normalmente ainda no chão ou elevados por uma corda amarrada na presa ou em alguma outra parte do corpo. Crianças, inclusive, também são expostas ao lado das carcaças e das armas.

“Será que era grande? kkkkk um monstro”, afirmou uma publicação divulgada em 27 de maio de 2019, no grupo “Compra e Venda de Cães de Caça”. A mensagem era acompanhada de um homem e uma criança ao lado de um grande javali, que foi erguido por uma corda. Dois cachorros também “posam” para a foto.

Venda de cães explorados para a caça

A reportagem identificou ainda a comercialização de cães explorados para a caça. O valor dos caninos varia entre R$ 1,5 mil e R$ 3,5 mil, de acordo com a raça e em que espécie ele é “viciado”, ou seja, treinado para identificar e perseguir. Se passando por um caçador interessado, o repórter conversou com dois vendedores.

Um dos comerciantes informou que os cães que tinha disponível já haviam sido comercializados, mas que possui filhotes da raça beagle e que, a partir de 2025, já estariam preparados para caçar javalis. Os beagles popularmente usados na caça pelo olfato apurado.

“To ensinado no javali. Lá pra julho vou começar a levar para o mato. Não [cachorro] que vai em roedor”, afirmou o caçador.

Um outro vendedor, porém, afirmou ter cães “viciados” em mais espécies, mas detalhou que chegou a ter problemas com um dos animais. “Eu só caço tatu. Essa aí eu passei porque ia no caititu, aí eu não caço porco. Eu pego muito cachorro bom, vendi uma boa hoje, mas essa era só acuava porco, bem viciada. Estou com um aqui, mas já vendi para um rapaz também. Eu faço um preço bom, vendo rápido. Já vendi mais de 20 pra fora”, confessou.

O promotor João Pedro explica que a comercialização dos cães não é considerada crime, assim como usá-los na caça de maneiro. A divulgação e o treinamento dos animais para fins de caça também não é uma prática ilegal, desde que os cachorros não sejam submetidos a sofrimento.

No entanto, a exposição dos animais em ambientes e situações que podem comprometer a saúde física do animal é qualificada como maus-tratos. A pena para o tutor nestes casos pode chegar a cinco anos – quatro a mais do que o previsto para os caçadores, de apenas um ano.

“A maioria destes crimes ambientais resultam no registro do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), como se fosse uma versão simplificada de um inquérito policial. Nos últimos 30 dias, em Porangatu, foram registrados três TCOs por caça. Esse fato é processado no juizado especial, que funciona tanto para causas cíveis, quanto criminais com menor pena, de até DOIS anos”, disse.

Foto: Reprodução

Prescrição de pena

João Pedro conta que, devido à baixa pena, a incidência deste tipo de crime é quase que nula – enquanto que a prescrição dos mesmo é alta. Como a pena máxima chega a um ano, o processo de investigação, denúncia e julgamento deve ocorrer dentro de um prazo de três anos – considerado curto pelo promotor.

Outro fato comum que evita condenações são os acordos firmados pelo MP e os criminosos ambientais. Entre os mais comuns estão a Transação Penal (TP) e o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), que garantem a troca da pena por multa e indenizações, por exemplo.

“O ANPP é para que não tenha denúncia e, consequentemente, uma condenação. O Código Penal prevê que a pena de até quatro anos, como nos crimes ambientais, seja cumprida em regime aberto. A pessoa não será submetida ao cárcere, nem ao regime prisional”, reforçou João Pedro.

CACs vendem munição

Mesmo considerado um estado agrário e rico em fauna e flora, as ocorrências de caça são tímidas, segundo o major Bruno Portella do Batalhão Ambiental da Polícia Militar de Goiás (PM-GO). Em 2023, o batalhão prendeu cerca 28 caçadores em posse de 13 animais mortos. As ocorrências ocorreram em 15 cidades, principalmente nas regiões sudeste e sudoeste.

O militar diz que as detenções ocorrem por meio de denúncias, visto que a prática ocorre no extenso ambiente rural. Somente neste ano, mais de 200 caçadores foram abordados pela equipe especializada, o que resultou na apreensão de quase 30 armas de fogo apenas no mês de setembro deste ano. As armas e munições apreendidas, de acordo com Portella, foram adquiridas de forma ilegal.

“Além dos javalis e as suas subespécies, os tatus, pacas, capivaras, veados e jacarés são muito procurados pelos caçadores. Porém, hoje temos um número muito grande de caçadores que praticam a caça regular”, explicou.

Durante as negociações com os caçadores, o Jornal Opção identificou ainda um grupo voltado à comercialização de munição. O espaço público era administrado por um homem que se identificou como CAC.

O traficante, durante conversa com o repórter, ofereceu munições de pistolas, como 9 mm e .380, além de espingardas de calibre 12, 16, 28, 32 e 36. Munições de fuzis, como 5,56x45mm, também estavam disponíveis para venda. As balas variam de preço, de acordo com o calibre.

“[Da espingarda calibre 12] é R$ 10,20 cada unidade. A caixa [com 25 estojos] faço R$ 230. A da 24 faço R$ 200 a caixa. Vou despachar algumas coisas hoje pra seu estado, quer aproveitar? Amanhã tenho outras coisas para despachar. Tudo bem sigiloso, pode ficar tranquilo”, afirmou o CAC.

As munições de pistola são mais em conta. Uma cartela com 10 estojos de calibre 9mm, por exemplo, sai a R$ 92. A caixa, com 50 unidades, é comercializada por R$ 380.

Questionado sobre a segurança do transporte e uma possível apreensão, o traficante diz que nunca teve problemas com as encomendas, que envia para todos os estados do Brasil a partir de Uberlândia, em Minas Gerais.

“Pode ficar tranquilo, chega certinho graças a Deus. Sempre fui honesto com meus negócios. A munição é original, CBC. Se eu enviar hoje ou amanhã, no máximo quarta-feira tá aí”, contou, afirmando que o transporte levaria, em média, dois dias.

O crime configura tráfico interestadual de munição. A pena pode chegar a oito anos de reclusão.

Fonte: Jornal Opção

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