A caça é proibida no Brasil desde 1967, e assim como pacas, tatus e capivaras, o ser humano também pode ser vítima dela. Segundo estudos recentes, esta atividade coloca em ameaça a saúde pública devido à alta probabilidade de transmissão de doenças como leptospirose e raiva, que são transportadas para as cidades pelos caçadores ou por seus cães, que tiveram contato com animais silvestres.
Os caçadores seriam intermediadores entre patógenos de velhas e novas doenças para humanos, por potencialmente levarem estes microrganismos da floresta, que antes estavam afastados da zona urbana mantidos controlados.
Uma pesquisa ainda em andamento dos cientistas Paulo Sergio D’Andrea, Gisele Winck e Cecilia Andreazzi, do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), identificou 160 patógenos, como vírus, bactérias, vermes, parasitas e fungos, em mais de 60 espécies de mamíferos caçados no Brasil. O intuito do estudo é verificar quais são esses patógenos que ocasionam doenças transmitidas pelo consumo e manipulação de carne de caça de animais silvestres.
A doença transmitida pode sair do controle a ponto de se tornar um problema mundial, como a crise sanitária ocasionada pelo novo coronavírus, que é considerada originária da China devido a manipulação local de carne animal infectada por coronavírus de morcego. A OMS vê grande preocupação na prática da caça, e por isso criou um painel chamado Saúde Única que parta da premissa da necessidade primária do equilíbrio na natureza para ser possível a saúde humana.
Javalis: animais exóticos que transmitem raiva
Os estudiosos da Fiocruz estimam um número ainda maior dos 160 patógenos já identificados na pesquisa. Segundo Gisele Winck, 158 dos achados são reconhecidamente nocivos para os seres humanos. Eles são causadores da febre maculosa, da leishmaniose, da leptospirose, de febres hemorrágicas e da raiva.
A raiva é a doença virulenta mais letal pois mata praticamente todos os infectados (99%) e foi alvo de um estudo com caçadores e javalis, sendo o último o transmissor da doença. O javali é um animal exótico europeu que se tornou praga no Brasil. Desde 2013 a caça de javali é permitida a fim de controlar a população, mas até agora os resultados não foram efetivos.
Entrar em contato com secreção de animal infectado é um risco para a raiva, ainda mais se considerar a falta de anticorpos do caçador e a presença dos mesmos no javali, sendo essa uma situação extremamente perigosa, uma bomba relógio, segundo Alexender Biondo, coordenador do estudo e professor do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Biondo diz que javalis atacando humanos é uma exceção, pois segundo ele não existe um só animal na fauna brasileira capaz de nos ameaçar. Por isso ele acentua que “a caça é uma tradição cultural cujo lugar é no passado”.
“O caçador traz doenças para ele, a família e a sociedade. É um semeador de futuras pandemias” adiciona Biondo.
São foco de estudos da Fiocruz morcegos e outros animais também. Pesquisadores cobertos totalmente com equipamento de proteção no Campus Fiocruz, Mata Atlântica em Jacarepaguá, por exemplo, capturam morcegos através de telas instaladas no mato, a fim de identificar vírus que potencialmente podem causar pandemias.
Caçadores interferem na relação entre patógenos e animais silvestres
Paulo Sérgio D’Andrea, vice-chefe do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres do IOC/Fiocruz, diz que 90% dos patógenos conhecidos que afetam animais silvestres não causam problemas para eles, porém os caçadores interferem nesta relação natural, ocasionando o risco de transmissão de doenças. Segundo ele, é preciso que a sociedade discuta a caça e tenha ciência dos riscos que ela traz.
Elba Lemos, chefe do Laboratório de Hantaviroses e Rickettsioses do IOC/Fiocruz, lembra que “o perigo está perto”.
“As florestas dos maciços da Pedra Branca, dentro do município do Rio de Janeiro, têm morcegos com bactérias do genêro Bartonella e a Coxiella burnetti, a causadora da febre Q, uma doença letal. Temos um foco de peste bubônica em roedores numa área da Região Serrana, latente há 30 anos”, fala Lemos.
“O caçador vira caça também por meios indiretos. Um deles é o contato com presas vivas e mesmo partículas em suspensão. A poeira da urina seca e das fezes de ratos pode transmitir febres hemorrágicas com 60% de letalidade; se for contaminada por excrementos de morcego, pode trazer a histoplasmose, doença pulmonar grave. Além disso, muitos animais caçados não estão doentes, mas estão infectados”, continua Lemos.
“Assim que um animal é morto, seus parasitas, sejam pulgas ou carrapatos, pulam imediatamente para os animais mais próximos, seja o ser humano ou seus cães”.
Elba Lemos ressalta a dificuldade de identificar doenças vindas da floresta porque são raras e desconhecidas, podendo passar despercebidas. Muitos sintomas podem aparecer depois do momento de caça, tornando difícil a associação da prática a doença.
Helia Piedade especialista nas interações entre a fauna silvestre e a saúde pública, fala sobre a circulação maior do vírus da raiva e das rickettsias, tipo de bactéria, que são transmitidas por carrapatos e causam a febre maculosa, doença muito perigosa que se não tratada pode matar 85% dos infectados.
“Os cães dos caçadores podem ser infestados por carrapatos de presas silvestres mortas, como capivaras. Os cães não têm sinais clínicos e, como circulam pela comunidade onde vivem, seus carrapatos se espalham. Quem não caça pode ser colocado em risco sem saber” acentua Piedade.
Ricardo Calil, presidente da Comissão Técnica de Alimentos do Conselho Regional de Medicina Veterinária no estado de São Paulo, afirma que a carne de animais silvestres é muito contaminada por doenças.
“O brasileiro se horroriza com os chineses que comem morcegos, mas em nossa sociedade há quem considere uma maravilha comer tatu, reservatório da bactéria da hanseníase, ou paca, hospedeira dos vermes da hidatidose, que forma cistos no fígado em outros órgãos” afirma Calil.
Precedentes arriscados
O pesquisador da Fiocruz Ricardo Moratelli recorda da relação entre caçadores de chimpanzés e a disseminação do HIV, sendo eles os responsáveis por isso. Segundo ele, ainda não se sabe em totalidade o número real de microrganismos potencialmente perigosos, como os coronavírus, em ambientes naturais.
São investigados a infecção por vírus respiratórios em jacarés e de vírus Cantagalo, que provoca pústulas em mãos e braços de seres humanos, em capivaras. Se estes animais não estivessem sendo caçados, eles poderiam nos ajudar a nos proteger.
“A pandemia nos mostrou a catástrofe que um único microrganismo pode provocar. Não podemos permitir riscos totalmente evitáveis, como os trazidos pela caça” fala Morelli.
Maria Ogrzwalska, pesquisadora do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo da Fiocruz, trata da existência de cerca de 70 espécies de carrapatos, que podem infestar todos os mamíferos, como tamanduás, capivaras, pacas e gambás, e os cães de caçadores. Os carrapatos transmitem febre maculosa e erliquiose.
Ainda de acordo com ela, os vírus de animais silvestres são pouco estudados no Brasil. Existem, por exemplo, três espécies de coronavírus em suínos.
“É uma péssima ideia colocar as mãos, comer ou tocar esses animais. Está mais do que na hora de deixarmos os animais viverem em paz. Nem que seja apenas para zelar por nossa própria paz”, fala Ogrzwalska.
Como as infecções de animais silvestres são passadas aos seres humanos
75% das doenças que apareceram nos últimos 40 anos são zoonoses e a caça é umas das principais causas. Entenda:
1 – Por estarem em contato direito com animais silvestres no campo, floresta, ou no abate, o caçador e seus cães ficam expostos a patógenos como vermes, fungos, protozoários, vírus e bactérias da fauna silvestre.
2 – O contato pode ser durante a manipulação do animal caçado, através, por exemplo de fluido corporal com um ferimento no caçador ou na pessoa que prepara a carcaça. Ainda há risco de contágio por mordeduras, arranhões e no consumo da carne.
3 – Os patógenos presentes nesses tecidos infectam a pessoa, que podem os expelir ou tornarem hospedeiros.
4 – É possível eles se infectarem através do contato com insetos, como mosquitos, pulgas e carrapatos, que infestam os animais silvestres.
5 – A depender do parasito ou patógeno, o humano hospedeiro pode transmiti-los a outras pessoas, iniciando um surto local e até global— ebola e Aids têm sua origem na caça. Acredita-se que a contaminação humana pelo coronavírus iniciou através do consumo ou manipulação da carne de animal silvestre.
6 – As florestas protegem os humanos por manter sob controle organismos nocivos em algumas espécies, porém, o descontrole pode ocorrer a partir de atividades invasivas como a caça.