Cabul, a capital do Afeganistão, corre o risco de se tornar a primeira cidade moderna a enfrentar um colapso total no abastecimento de água. Projeções da UNICEF indicam que os aquíferos da região podem secar até 2030, potencialmente deslocando 3 milhões de residentes.
Um novo relatório da organização Mercy Corps mostra que os aquíferos vêm encolhendo a um ritmo alarmante. Só na última década, seus níveis caíram de 25 a 30 metros. Quase metade dos poços artesianos da cidade – a principal fonte de água potável para os moradores – secaram.
Na cidade, o documento aponta que a extração de água excede a recarga natural em 44 milhões de metros cúbicos anualmente.
“Deveria haver um esforço empenhado para documentar melhor isso e chamar a atenção internacional para a necessidade de abordar a crise”, disse Dayne Curry, diretora nacional da Mercy Corps no Afeganistão, citada pelo The Guardian. “A falta de água significa que as pessoas abandonam suas casas, portanto, se a comunidade internacional não atender às necessidades hídricas do Afeganistão, isso só resultará em mais migração e mais dificuldades para o povo afegão.”
Crise hídrica é multifacetada
As razões para a crise hídrica severa pela qual passa Cabul são várias. Uma delas é a explosão populacional da cidade, que passou de menos de 1 milhão de habitantes em 2001 para cerca de 6 milhões em 2025, e transformou fundamentalmente os padrões de demanda por água.
Outro ponto é que há mais de 120 mil poços perfurados de forma não regulamentada – bem como centenas de fábricas e estufas –, que estão drenando os três principais aquíferos da cidade a quase o dobro da taxa que eles conseguem ser naturalmente reabastecidos.
As mudanças climáticas também entram na lista. O clima e a localização do Afeganistão o tornam altamente suscetível à seca, sendo que a mais recente, ocorrida entre 2021 e 2024, afetou mais de 11 milhões de pessoas.
Segundo o relatório, os choques climáticos reduziram de forma drástica a precipitação em todo o país, inclusive nas áreas de captação essenciais que alimentam os aquíferos de Cabul. Entre outubro de 2023 e janeiro de 2024, o Afeganistão recebeu apenas entre 45% e 60% da precipitação média esperada para o auge do inverno, em comparação com anos anteriores.
O derretimento da neve e das geleiras das montanhas Hindu Kush, principal fonte de recarga de água subterrânea da cidade, também vem se tornando mais escasso a cada ano, e os níveis de água subterrânea despencaram como resultado.
Mais uma explicação para a crise é que até 80% da água subterrânea de Cabul está contaminada com esgoto, substâncias tóxicas e níveis perigosamente altos de produtos químicos como arsênio e nitratos.
As falhas de governança também pioraram o problema. A Mercy Corps aponta que, apesar de duas décadas de intervenção humanitária internacional, a infraestrutura hídrica existente na capital afegã permanece gravemente inadequada para atender à população em crescimento da cidade.
Além disso, o isolamento do governo do Emirado Islâmico do Afeganistão no cenário global desde agosto de 2021 – quando o Talibã retornou ao poder – congelou US$ 3 bilhões (aproximadamente R$ 16,6 bilhões) em financiamento internacional para programas de água, saneamento e higiene, paralisando desde a manutenção de infraestrutura até programas de educação hídrica comunitária.
Por fim, a escassez de financiamento governamental, junto com a falta de investimento do setor privado, atrasou projetos críticos de infraestrutura hídrica, como o gasoduto do rio Panjshir e a represa de Shah Toot, que, se concluídos, poderiam ajudar a aliviar os problemas hídricos da cidade.
Família contraem dívida para pagar pela água
A falta de água potável limpa em Cabul forçou o encerramento de escolas e instalações de saúde necessárias em vários subúrbios e fez o preço da compra de água subir astronomicamente, colocando estresse econômico adicional sobre lares já em dificuldades.
O relatório informa que algumas empresas privadas estão capitalizando a crise, cavando novos poços e extraindo grandes quantidades de água subterrânea pública, para depois vendê-la de volta aos moradores da cidade a preços inflacionados.
Hoje, as famílias locais gastam entre 15% e 30% do seu rendimento mensal com água, acima dos 5% de 2021. Os custos semanais com esse recurso podem exceder os com alimentação para mais da metade das famílias em algumas áreas da cidade, e muitas delas são forçadas a pedir dinheiro emprestado para pagar pela água – 68% têm dívidas relacionadas.
A Mercy Corps salienta que a crise hídrica teve impactos críticos na economia do Afeganistão, com perdas anuais de US$ 1,2 bilhão (R$ 6,6 bilhões) em produtividade, contribuindo para a contração do PIB. E acrescenta que o setor agrícola de Cabul foi duramente atingido.
Ainda de acordo com a organização, todo esse cenário evidencia a necessidade urgente e crítica de políticas sustentáveis de gestão da água, investimentos em nova infraestrutura e ações coordenadas entre governo, setor humanitário e setor privado.
Fonte: Um só Planeta