Tenho constatado com preocupação a crescente onda de veganos se autoproclamando “antiespecistas”.
Por que isso seria preocupante? Porque me parece um princípio equivocado sobre o qual apoiar a nossa causa. Explico-me:
Em primeiro lugar, uma questão mais histórica e conceitual, esse antiespecismo me remete, negativamente, à tendência pós-moderna de reduzir todos os conflitos sociais a formas de discriminação: sexismo, racismo, classismo, heteronormativismo, e assim por diante. Historicamente, isso se deu pela constatação de que o modelo marxista de explicar as injustiças e desigualdades a partir da luta de classes se mostrou limitado. Mas esse esforço resultou na construção de uma categoria muito abstrata de “opressão” que, em vez de partir da realidade concreta da exploração material, condicionou-a a uma forma de discriminação ou preconceito prévio, que a legitima. Apenas um dos muitos problemas dessa visão de mundo é que essa forma de pensamento idealista tem muitas poucas evidências em seu favor. Geralmente a ideologia surge para justificar um estado de coisas, e não o contrário.
Outro problema dessa obsessão com o especismo é uma questão muito prática que, me parece, está diretamente relacionada com essa interpretação idealista e simplista do fenômeno.
Abolir o especismo, por si mesmo, não enseja nem o veganismo nem a liberdade animal. Há muitas formas de sermos antiespecistas. Podemos ser antiespecistas que não reconhecemos direitos a nenhum animal, inclusive o animal humano. Podemos ser antiespecistas que não reconhecemos a dignidade inerente de nenhum indivíduo, inclusive o indivíduo humano. Filosofias ambientalistas ecocêntricas demonstram isso com muita eloquência. A “ética da terra” de Aldo Leopold sustenta que, pelo bem maior da preservação ambiental, todos os indivíduos podem ser sacrificados. Um mundo antiespecista, portanto, pode muito bem ser um mundo em que todos os indivíduos sencientes sejam igualmente descartáveis. O fascismo, portanto, pode ser antiespecista.
Não podemos escapar do estabelecimento de uma hierarquia de valores quando nos deparamos com as questões fundamentais da ética e da política: o que constitui uma boa vida?; qual o fundamento da justiça?; qual a melhor forma de organizar a sociedade? E, tão somente a partir da reflexão até aqui exposta, parece bastante claro que há um princípio mais fundamental sobre o qual se ancora a causa animal: o respeito pela vida e a dignidade individual do ser senciente.
O ativismo político de modo geral tenta responder a essas perguntas com um princípio básico, supremo. Para os liberais, será a liberdade. Para os socialistas, a igualdade. Percebo que para os veganos tem sido o especismo.
Já passou da hora de romper com esse simplismo conceitual. Não existe ideal supremo, conceito mágico aglutinante, que nos ofereça todas as respostas. Se queremos efetivamente responder às grandes questões éticas e políticas, precisamos pensar, de forma pluralista, num conjunto de valores.
Sim, somos antiespecistas, mas não somos só isso, e existem valores superiores, aos quais nos comprometemos antes de sermos antiespecistas. São os valores que pautam nosso antiespecismo.
Somos antiespecistas porque somos contra a violência e a exploração a que submetemos os animais. Somos antiespecistas porque nos comprometemos com a sua liberdade, desejamos que eles sejam moralmente iguais a nós, que nossos princípios de justiça seja estendidos a ele, e porque desejamos que suas vidas e interesses fundamentais sejam respeitados. E desejamos isso não a nenhuma categoria abstrata de animal ou espécie, mas a todos os indivíduos sencientes.
Antiespecismo nem de longe dá conta de denominar ou fundamentar estes princípios e nossos objetivos. Abolicionismo e animalismo são conceitos muito melhores e eu não entendo bem porque o primeiro tem caído em desuso e o segundo nem sequer foi suficientemente elaborado.
Parece-me que as pessoas se preocupam com a apropriação espúria que bem-estaristas têm feito do abolicionismo, assim como já fizeram com veganismo e direitos animais. Entretanto, essa atitude reativa não resolve o problema. Todo conceito é imperfeito, pelos motivos já expostos, e o antiespecismo me parece particularmente vulnerável. E se, em vez de opor resistência aos oportunistas, ficarmos inventando novos conceitos toda vez que eles tentarem se apropriar de nossa causa, nós mesmos jamais teremos uma identidade própria.
Denominar aquilo que queremos é sempre mais construtivo e mais abrangente do que denominar aquilo a que nos opomos.
Nesse sentido, e como eu o percebo, o animalismo se pauta nos seguintes princípios fundamentais:
– Dignidade individual
– Liberdade
– Igualdade
Para que estes princípios prosperem, devemos abolir a exploração, a escravidão animal. Somos abolicionistas.
Essa exploração é legitimada por uma ideologia especista, e por isso somos antiespecistas.
E o primeiro passo para efetivar a abolição e trazer para o mundo concreto esses princípios que professamos no mundo das ideias é adotar o veganismo.