A luta contra a tortura dos animais ainda tem muito caminho a percorrer. Esta modesta panorâmica visa contribuir para esse progresso.
“Considerando que as corridas de touros são um divertimento bárbaro e impróprio de Nações civilizadas, bem assim que semelhantes espetáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e à ferocidade, e desejando eu remover todas as causas que possam impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da Nação Portuguesa, hei por bem decretar que de hora em diante fiquem proibidas em todo o Reino as corridas de touros.”
Decreto de Passos Manuel, de 19 de setembro de 1836.
Este foi o decreto de proibição da tourada em Portugal, mas durou poucos meses, pois foi revogado pelas Cortes (assembleia legislativa da monarquia constitucional). Felizmente outras políticas progressistas levadas a cabo por Passos Manuel e os “setembristas”, na sequência do golpe de Estado de 9 de setembro de 1836, tiveram vida mais longa, o ensino das línguas modernas e a rede de Liceus Nacionais (onde se inclui o Liceu de Santarém) são exemplo desses importantes passos para o futuro.
As touradas são praticadas principalmente no Estado Espanhol, em Portugal, em algumas cidades do sul de França e nalguns países da américa latina. No entanto a história das proibições das touradas é menos conhecida. Por isso pretendi fazer umas notas que não são exaustivas mas que dão uma panorâmica sobre a matéria. Darei mais relevo à história de outros países, ficando para quem tenha conhecimento mais profundo o caso português.
O “decreto” de proibição das touradas mais antigo de que tenho conhecimento é a bula De Salute Gregis (1 de novembro de 1567) do papa São Pio V, que excomungava todos quantos participassem ou assistissem a “esses espetáculos sangrentos e vergonhosos dignos de demónios e não dos homens”. No entanto, a decisão só foi acatada em Itália. Na Monarquia Espanhola encontra grande oposição. Em Portugal demora três anos a ser publicada, e as touradas apenas proibidas pelo Cardeal D. Henrique. Na França nunca se publica e só se cumpre muito mais tarde com esforço dos bispos locais. No México foi debatida pelos bispos mas nunca chegou à prática. Apesar disso, esta proibição foi feita com tal limitação de derrogações futuras que Pio V nunca cedeu às pressões do poderoso monarca espanhol Filipe II, aliado da Santa Sé na guerra pelo fim do domínio turco do mediterrâneo.
Filipe II só viu a sua pressão funcionar com o papa Gregório XIII, que pouco antes da sua morte, na Encíclica Exponi nobis (25 de agosto de 1585) levanta a proibição dos fiéis assistirem às touradas mas mantém a proibição aos clérigos. Os papas Sisto V e Gregório XIV vão manter essa proibição aos clérigos mas não sem conflito: alguns membros da Universidade de Salamanca não só assistem como promovem as corridas de touros. A causa de Filipe II e dos clérigos salmantinos só terá sucesso junto do papa Clemente VIII. Este papa publica a Breve Suscepti muneris (3 de janeiro de 1596) anulando (“supostamente”) a Bula Salute Gregis, ficando a proibição apenas para os dias santos. No entanto, apologistas da proibição contestam a derrogação por estar proibida pela bula de 1585.
Também na sequência das independências, nuns casos mais imediato, noutros mais tardios, houve proibições nos novos Estados latino-americanos, nomeadamente Argentina (1899), Cuba (1901, ainda por decisão dos norte-americanos) e Uruguai (1912). Mesmo assim houve retrocessos, sendo de destacar o México, onde houve proibição em 1890, mas esta veio a ser retirada. Aliás, é na Cidade do México que se situa a maior praça de touros do mundo. Há contudo novos ventos de mudança no México: em 2012, o Congresso do Estado de Sonora aprovou por unanimidade, para esse “distrito federal”, a lei de proteção animal, que entre outras coisas, proíbe as touradas. Também nos últimos anos, há a assinalar os casos de Nicarágua (2010) e do Panamá (2012).
No Brasil, as touradas, bem como as “rinhas de galos”, só foram proibidas em 1934, sob a presidência de Getúlio Vargas.
Nos Estados Unidos, a tourada “tradicional” só é permitida no Texas, embora não seja onde há mais “tradição”. No Vale Central da Califórnia as comunidades de origem mexicana e portuguesa usam um sistema de velcro para não magoar os animais, simulando as antigas touradas.
Regista-se também a existência de “proibições” dúbias. Dentro do Estado Espanhol, a legislação das ilhas Canárias (1991) é controversa. Os anti-touradas afirmam que é proibido, os pro-touradas dizem que se aplica a proibição apenas de violência sobre animais domésticos e que na letra da lei não inclui o touro “bravo”. Seja como for, é fato que, por um lado, a lei canária exclui dessa proibição as lutas de galo, por outro, a última tourada nas Canárias foi em 1985. Outro caso é o dos referendos no Equador, em 2011, onde a nível nacional 61,2% responderam “sim “ à pergunta “concorda que no cantão onde reside sejam proibidos os espetáculos destinados a matar o animal?”. Genericamente foi entendido que se proíbe apenas os “touros de morte”, mas os resultados são mais complexos, nomeadamente a nível regional (uma análise mais detalhada pode ser encontrada aqui).
A nível televisivo, a estação pública espanhola TVE esteve proibida de transmitir em direto as touradas entre agosto de 2007 e setembro de 2012, quando o PP levantou a proibição. A questão dos diretos tinha a ver com a impossibilidade de cortar cenas consideradas “mais violentas”.
A luta anti-tourada no Estado Espanhol cruza os direitos dos animais com a causa da independência, nomeadamente na Catalunha, na Galiza e no País Basco. Note-se que o ditador Francisco Franco promoveu as touradas como algo genuíno do espanholismo. No País Basco, o método que está a ser adotado é acabar com as touradas cidade a cidade, uma tática “importada” da Catalunha. Na Galiza, segundo estatísticas da Gallup, 86% das pessoas são contra as touradas, e também algumas cidades declararam-se anti-tourada, apesar do menor “enraizamento” desta prática.
No caso da Catalunha o confronto é muito forte dada a maior implantação que esta prática teve. Na década de 2000, várias cidades catalãs declararam-se anti-tourada, nomeadamente a capital, Barcelona (2006). Porém a proibição da tourada pelo governo regional só foi conseguida com uma lei de Julho de 2010 que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2012 (continuam no entanto permitidos os “correbous” catalães, largada de touros pelas ruas em que os animais não são espetados nem mortos embora sejam molestados). Na votação foi claro o alinhamento das forças políticas espanholistas (PP e PS) pelas touradas, e o dos nacionalistas (Convergència i Unió, e Esquerra Republicana de Catalunya) pela proibição das touradas, junto com o grupo da Iniciativa pela Catalunya Verds-Esquerra Unida i Alternativa. A nível do poder central do Estado Espanhol há movimentações para levantar a proibição.
Voltando a Portugal, a luta contra a tortura dos animais ainda tem muito caminho a percorrer. Esta modesta panorâmica visa contribuir para esse progresso. Quem tem a convicção ética de que a tortura dos animais deve ser proibida, tem de enfrentar o problema “pelos cornos”. Sou anti-tourada.
Fonte: esquerda.net