Fumaça no café da manhã, fumaça para o jantar. Talvez até falte comida, mas a fumaça é uma certeza desagradável no dia-a-dia de qualquer pessoa que viva no Norte do Brasil, onde ano após ano, sempre no segundo semestre, a região amazônica é desmatada e queimada para dar lugar à agropecuária. Em 2024, entretanto, a fumaça e as queimadas ilegais alcançaram uma escala sem precedentes, atingindo diferentes regiões e levando morte e destruição para todo o país.
De janeiro a setembro de 2024, foram registrados 104.639 focos de fogo na Amazônia brasileira, número 80% maior que o registrado no mesmo período do ano passado. No Cerrado, esse número já superou em 86% o número focos do mesmo intervalo de 2023, chegando a 68.631 focos, segundo dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
No Pantanal, maior planície interior úmida do planeta, o número de focos de calor de janeiro a setembro chegou a 11.855, quantidade 1.427% maior que a registrada nos mesmos nove meses do ano passado, de acordo com o Inpe. Considerando a área queimada, o fogo já consumiu 2.1 milhões de hectares da vegetação nativa, de acordo com dados do Sistema ALARMES, desenvolvido pela pelo LASA/UFRJ.
Os motivos desta catástrofe são variados, mas dois fatores unem todas essas tragédias: uma estiagem persistente e anormal, fruto das mudanças climáticas, e o agronegócio destruidor, muito bem financiado por bancos e investidores do Brasil e do mundo, que se utiliza do fogo ilegal para renovar pastagens e promover o avanço rápido da fronteira do desmatamento sobre florestas, savanas e outros ambientes naturais.
Mudanças climáticas, agronegócio e finanças imprudentes: uma combinação mortal para a natureza
Na Amazônia, o fogo não ocorre naturalmente, ele é usado como ferramenta no processo produtivo do agronegócio industrialde desmatamento, ou para a limpeza de pastagens. A pecuária, por sua vez, é o setor que mais desmata a floresta, ocupando cerca de 90% das áreas desmatadas na Amazônia até 2023. Este ano a Amazônia passa por outra grave seca, o que torna a floresta mais vulnerável às queimadas.
Já no Pantanal e no Cerrado, que ocupam toda a região central do país, o fogo até pode ocorrer de maneira natural, mas na maioria dos casos a ignição é humana, seja por causa acidental ou deliberada e relacionada à agropecuária. A diferença é que o avanço do fogo nestes biomas vem se intensificando nos últimos anos, devido aos efeitos dos eventos climáticos extremos das estiagens.
Segundo levantamento publicado pelo MapBiomas Águas, o Pantanal foi o bioma que mais secou ao longo da série histórica, que vai de 1985 e 2023. Em 2023, esta região alagável teve sua superfície de água anual 61% abaixo da série histórica. O estudo também apontou que houve redução da área alagada e do tempo de permanência da água. Já o Cerrado enfrenta a pior seca dos últimos 700 anos, segundo estudo de pesquisadores da USP, publicado na Nature Communications.
O desmatamento e as queimadas são as principais fontes de emissões de gases do efeito estufa (GEE) no Brasil. De acordo com dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases do Efeito Estufa (SEEG) referentes a 2022, a categoria “mudança do uso da terra” foi responsável por 48% das emissões do país, e a agropecuária por 27% das emissões.
E é aí que está o enrosco: apesar do enorme impacto ambiental e social que produzem, com o desmatamento, as queimadas e ilegalidades, as contribuições para as mudanças climáticas, o setor agropecuário não vem sendo responsabilizado por isso, nem os bancos e investidores que injetam valores vultosos, em empréstimos e investimentos, para custear a devastação da natureza alheia.
Onde há fogo, há alguém que lucra, enquanto a sociedade e a biodiversidade pagam a conta.
O clima está mudando, mas a forma de fazer negócios continua igual
Todos os dias, os eventos climáticos extremos vem mostrando para a humanidade o que lhe aguarda se nada for feito para segurar o aquecimento do Planeta. O Clima está mudando, a biodiversidade vem decaindo, mas sabe o que não muda? A forma de fazer negócios de grandes empresas e bancos.
Se algum dia o conceito de queimar florestas e incendiar pastos foi considerado normal, o jogo virou. Nos tornamos uma terra inflamável, e os incêndios criminosos não podem mais acontecer. Mas as queimadas ainda não são vistas como um problema para as instituições financeiras que investem no agronegócio e no seu modo de agir.
Um levantamento do Greenpeace Brasil identificou 133 propriedades que foram embargadas por uso ilegal do fogo na Amazônia e no Cerrado, entre 22 de julho de 2008 e 30 de junho de 2024, e que tiveram acesso ao crédito rural, uma linha de financiamento que conta com recursos do orçamento do estado e oferece taxas subsidiadas pelo governo. Na Amazônia, 116 das 122 propriedades rurais financiadas e com embargo por uso ilegal de fogo queimaram pelo menos uma vez em 6 anos. Juntos, eles somam uma área queimada equivalente a 1,8 vezes o tamanho de Paris. Apenas 0,1%, dos R$ 58 milhões devidos por multas aplicadas pelo crime, foram pagas.
Em abril deste ano, o Greenpeace Brasil publicou outra investigação que mostra como os critérios e análises para a concessão de crédito ainda é leniente diante das infrações e crimes ambientais do agro. O Greenpeace Brasil fez uma análise sobre as operações de Credito Rural realizadas para propriedades na Amazônia e identificou que 10.074 propriedades sobrepostas a Unidades de Conservação tiveram acesso à linha de crédito rural. Foram identificados ainda 798 imóveis financiados com embargo por crimes ambientais e 24 sobre Terras Indígenas, tudo em total desacordo com as regras e com o bom senso.
Mas o mercado financeiro global também investe em empresas envolvidas na missão de transformar a Amazônia e outros ecossistemas brasileiros em cinzas. A JBS, princesinha do greenwashing e gigante da produção de proteína animal, recebeu 35 bilhões de dólares americanos em empréstimos e subscrição de títulos colocados no mercado de capitais, entre 2015 e primeiro trimestre de 2023, segundo levantamento encomendado pelo Greenpeace Internacional à organização de pesquisa Profundo. Os principais bancos que operaram esses fluxos foram Barclays (sediado no Reino Unido), seguido do Banco Royal do Canadá e em terceiro o Grupo financeiro do BMO (Canadá e Estados Unidos). A JBS é conhecida por quebrar acordos de não desmatamento e pelo recorrente envolvimento em crimes socioambientais.
No momento em que vivemos, não é mais aceitável investir em um modelo econômico que perpetua desigualdades e promove a destruição das florestas e da biodiversidade. A mudança precisa vir de todos os lugares, tanto de quem produz, como de governos e de quem lucra com isso.
Para cumprir as metas do acordo Kunming-Montreal sobre biodiversidade, assumido pelas nações durante a última conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade (CBD/COP15), Estados devem tomar medidas para que os fluxos financeiros (públicos e privados) se alinhem a conservação da biodiversidade, retirando subsídios e incentivos prejudiciais, e direcionando prioritariamente para atividades que promovam a conservação e uso sustentável da biodiversidade.
Precisamos confrontar as péssimas escolhas de governos e do sistema financeiro nacional – e mundial. Ano que vem, a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30) será realizada no meu Brasil, em Belém (PA), na nossa Amazônia. Eu espero que até lá não tenhamos mais fumaça para o chá da tarde. Por isso, minha mensagem de esperança é essa: por que deixar para amanhã o que podemos mudar hoje?
Fonte: Greenpeace