As histórias do boto povoam o imaginário dos ribeirinhos amazonenses. Quase todo pescador tem raiva – e, algumas vezes, medo – do animal. Esperto e rápido, o boto consegue ludibriar os ribeirinhos e logra roubar seus peixes, furando e destroçando redes de pesca. O mito do boto que se transforma em um jovem sedutor, vestido de branco, piora sua fama. A moça desprevenida que engravida acaba culpando o animal, o que deixa os homens ainda mais furiosos e ameaçados pelo boto vermelho, como ele é chamado na Amazônia.
Por outro lado, para o resto do mundo, o boto-cor-de-rosa (tradução do nome inglês pink river dolphin) é um mamífero aquático dos mais carismáticos, tão querido como baleias e os golfinhos do mar. Sua inteligência e seu elaborado sistema de ecolocalização encantam biólogos e sua velocidade e flexibilidade fascinam aqueles que conseguem vislumbrá-lo nas águas vermelhas e transparentes do rio Negro.
Entre amor e ódio, se o boto (cor-de-rosa ou vermelho) continua dando sustos nos pescadores, ele também vem apaixonando cada vez mais os visitantes. Há cerca de duas décadas, Dona Marilda, do vilarejo Novo Airão, começou a promover a observação dos botos em um flutuante às margens do rio Negro. Muitas outras iniciativas se seguiram, inclusive a de hotéis.
Márcia Ferreira Mesquita, de 39 anos, nasceu e se criou nas redondezas da comunidade São Thomé, parte do município de Iranduba, AM. Quando Márcia era menina, o local ficava a um dia de canoa de Manaus; hoje o percurso leva apenas 30 minutos com uma voadeira. A pescadora conta que sua história com os botos começou há 10 anos, ao montar uma barraca na praia para vender bebidas e petiscos para eventuais visitantes.
Em 2007, ela estava no local (chamado hoje de Praia Amigo do Boto), quando apareceu um boto pequeno que tinha um arame enrolado no bico. “Deve ter sido maldade de algum pescador raivoso”, diz Márcia. Com a ajuda da AMPA (Associação Amigos do Peixe-Boi), o boto foi cuidado e o animal passou a visitar Dona Márcia com frequência. “Meteco foi o primeiro boto a brincar com meus filhos. Todos os botos gostam muito de brincar com bola, galho ou pedaço de pau”, afirma.
No ano seguinte, Márcia e seu marido David Coelho de Souza, com a ajuda de seus sete filhos, montaram um flutuante que fica a 50 metros da praia. Hoje, recebem visitantes de todos quadrantes, fascinados com a possibilidade de ver botos bem de perto. “As pessoas podem entrar na água, sempre com salva-vidas, mas peço para que não toquem nos botos”, diz. Na verdade, quem chega perto é mesmo o boto. Curioso e brincalhão, ele roça e encosta nos banhistas, dá pequenos empurrões ou puxa o salva-vidas.
“Os botos transformaram a vida de nossa família. Se antes David e eu tínhamos raiva porque eles rasgavam nossas redes, hoje nós nos dedicamos totalmente a eles. Queremos sua proteção”, diz Márcia. O casal pensa investir em um flutuante maior, com a comodidade de um banheiro, onde os visitantes poderão trocar de roupa para entrar na água. Pensam também em organizar um pequeno museu-escola na comunidade.
Infelizmente, nem todos os pescadores pensam como Márcia e Daniel e a situação dos botos tem se deteriorado bastante na última década, período durante o qual a população diminuiu em 10%, segundo pesquisadores da AMPA. A razão não é o contato dos botos com os turistas – este, sim, tem ajudado a criar uma maior conscientização ambiental – mas um crime cruel. O boto Inia geoffrensis é protegido por lei, mas ele é capturado com arpões e redes, assassinado de forma brutal com golpes na cabeça e seu corpo é fatiado para servir como isca na pesca de um bagre carniceiro, a piracatinga (do tupi guarani, pirá + catinga, peixe fedido).
A piracatinga era antes comercializada somente na Amazônia, mas hoje está sendo vendida em supermercados de diversas capitais brasileiras sob o nome ingênuo de “douradinha”. Antes de comprar um filé de “peixe fedido”, saiba que a “douradinha” pode ter provocado a morte de um boto.
Com informações de Época.