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ENTREVISTA

Bióloga e ativista Paula Brügger fala sobre retratação de animais não humanos na mídia

Bióloga e co-fundadora da ANDA conta sobre sua nova publicação e sobre sua trajetória de estudos e amor aos animais

15 de outubro de 2021
Redação ANDA
9 min. de leitura
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E-book “Animalidades – fundamentos, aplicações, e desafios contemporâneos” tem capítulo escrito pela bióloga e ativista Paula Brugger

A retratação de animais não humanos na mídia é o tema de um capítulo escrito pela bióloga e co-fundadora da ANDA, Dra. Paula Brügger, no novo e-book Animalidades – fundamentos, aplicações, e desafios contemporâneos.

Paula, que é autora de inúmeros capítulos de livros, colunas, e artigos sobre ética ambiental e animal, além dos livros Educação ou adestramento ambiental? e “Amigo Animal – reflexões interdisciplinares sobre educação e meio ambiente: animais, ética, dieta, saúde, paradigmas”, livro-texto do projeto homônimo de educação ambiental animalista, pioneiro no Brasil, disserta sobre sua trajetória do ambientalismo crítico ao ambientalismo abolicionista animal.

Em entrevista exclusiva à ANDA, a professora comenta sobre a recente publicação de uma de suas áreas de pesquisa: a imagem da natureza e dos animais não humanos na mídia. Vamos então explorar o capítulo “Mídia, natureza, e animais não humanos: uma parceria improvável”, do e-book de acesso aberto “Animalidades – fundamentos, aplicações, e desafios contemporâneos”.

Foto: Divulgação | Arquivo pessoal

ANDA: Como tudo começou?

PB: O início do meu interesse nessa área de estudos remonta à fase de redação da minha dissertação de mestrado em 1993. Inspirada no ideário da Teoria Crítica – especialmente na visão do filósofo Herbert Marcuse – propus o conceito de “adestramento ambiental”, o qual, sinteticamente, consiste num tipo de instrução fundamentada numa racionalidade puramente instrumental. Nessa perspectiva, a questão ambiental é reduzida às suas dimensões naturais e técnicas, e é despida de seu conteúdo ético, estético, histórico, político, social etc. Ainda durante a dissertação, percebi a importância que a mídia teria na formação de valores, no sentido lato, e assim decidi eleger esse tema para a minha tese de doutorado.

ANDA: Como foi feito esse estudo? Que meios de comunicação foram a analisados?

PB: Inicialmente havia focado tão somente na ideia de que os grandes meios de comunicação de massa seriam também adestradores e, do mesmo modo que a educação formal – limitada e acrítica – seriam elementos cruciais no que tange à tecitura das bases éticas da nossa relação com a natureza.
Durante a escritura da tese, porém, descobri muito mais sobre a inter-relação entre comunicação, racionalidade instrumental, e meio ambiente: a trajetória histórica da comunicação no Ocidente, em si, foi um fator decisivo para a emergência de um “mundo vivido” marcado por um domínio implacável sobre a natureza.

Cheguei a isso analisando, numa perspectiva transdisciplinar, os argumentos de autores que teceram considerações acerca da linguagem, da escrita, ou de ambas, e sua relação com a existência humana.

A conclusão – grosso modo – foi que a crescente reificação da comunicação caminhou passo a passo com um processo de progressiva ruptura entre nós e o entorno, além de outras questões que não envolvem necessariamente a questão ambiental. A tese tomou, enfim, um rumo um tanto inesperado (isso acontece mais comumente do que se imagina! rs, rs) e apenas na parte final analisei, à guisa de ilustração, a programação de dois dias corridos do canal de TV a cabo Discovery Channel.

A idéia era testar a fundamentação teórica que, ao fim e ao cabo, constituiu a maior parte da tese em si. Devido a essa guinada, a palavra “educação” acabou saindo do contexto principal e a tese, defendida em 1999, teve como título “Uma leitura ambientalista da comunicação no Ocidente”.

ANDA: Como o viés educativo dos meios de comunicação voltaram a fazer parte do seu trabalho?

PB: Bem, na época da defesa da tese muitas transformações começaram a acontecer no que tange à minha visão e relação com os animais não humanos.

Um fato marcante, ainda durante a redação da tese, foi um insight que tive ao contemplar o título de um livro do fotógrafo italiano Oliviero Toscani: A publicidade é um cadáver que nos sorri. Pensei imediatamente que nos comerciais de carnes de animais abatidos para o consumo humano essa expressão se tornava literal.

Enfeitando os “presuntos” (que na gíria é “morto”, “cadáver”) aparecem imagens de frangos velozes e felizes, porquinhos sorridentes, e vacas orgulhosas de venderem seus próprios corpos. Isso foi brevemente discutido na tese.

O que Toscani quis dizer foi que ´a publicidade estava morta, mas continuava sorrindo´, mas para mim ela ajudou a descortinar uma visão para além do ambientalismo crítico. Minha trajetória animalista embrionária continuou com a proposição do projeto Amigo Animal (2000-2015) e em 2002 participei de um livro pela editora Cortez, com o titulo “Os novos meios de comunicação: uma antítese da educação ambiental?”.

Aliás, lamento destacar a atualidade da maior parte dos argumentos dos autores que usei na construção teórica tanto da tese, quanto desse capítulo de livro. Isso inclui discussões sobre a “natureza da mídia” e a “natureza na mídia”, seus subjacentes estímulos aos processos de ruptura entre nós e o entorno, sua apologia ao narcisismo e à futilidade, à glorificação da técnica, e, claro, seu caráter especista, entre outras questões que passam pela venda das mercadorias materiais e simbólicas inerentes aos meios de comunicação.

Quanto ao narcisismo, Michel de Certeau (1996) enfatiza que “da televisão ao jornal, da publicidade a todas as epifanias mercadológicas, a nossa sociedade mede toda a realidade por sua capacidade de mostrar ou de se mostrar e transforma as comunicações em viagens do olhar”. Infelizmente, até mesmo no seio da luta pela abolição da escravatura animal isso tem lugar: não basta escrever, ou defender seus direitos no plano concreto, a “credibilidade” passa (bastante!) por se mostrar como um “bom produto” vegano…

ANDA: E quando os “franguinhos velozes” voltaram a ser foco principal do seu trabalho?

PB: Meu primeiro texto sobre o especismo no jornalismo foi o curtíssimo “Farra do búfalo”?, publicado no jornal AN Capital, em setembro de 2005. Foi uma crítica a uma matéria especista do Fantástico (Rede Globo). Em 2007 fiz, a pedido da UIPA (União Internacional Protetora dos Animais), um parecer sobre o impacto da exibição de animais no programa Bom Dia e Cia (SBT) na formação de valores que envolvem a relação humanos-animais não humanos em crianças. O parecer foi anexado a uma ACP movida pelo Ministério Público de São Paulo, que acionou a rede de televisão SBT.

Mas foi no site da Agência de Notícias de Direitos Animais – ANDA, na coluna Tao do Bicho, que publiquei diversos textos sobre a mídia e os animais. Alguns exemplos são: Globo News promove touradas; Mídia dardeja o vegetarianismo; Jornalismo especista; “Búfalo Bill” Brasil; Vaquejada na TV: o discurso especista e opressor de Gabeira; Fernando Gabeira revela seu desprezo pelos animais ao defender matança de javalis; Churrasco de jegue e apologia à Festa do Peão em Barretos; Ana Maria Braga e sua pseudopreocupação com os animais; Media Watch: Folha de São Paulo promove antialérgico, etc. Em termos de reflexão teórica acadêmica, houve três trabalhos nessa temática até o momento.

ANDA: Onde foram publicados esses outros trabalhos que, pelo que entendi, são mais extensos? E sobre o que tratam?

PB: Dois desses textos acadêmicos foram publicados na Revista Brasileira de Direito Animal (RBDA). O primeiro foi um artigo acerca da existência, ou não, de valores especistas transmitidos via conteúdos latentes pela televisão.

Para responder a tal questão, foram analisadas quatro matérias do programa Pelo Mundo, da emissora Globo News, em 2013.

O estudo evidenciou o modo como a mídia legitima valores que são avessos a uma ética que se pode qualificar de correta no que tange à relação entre nós e os outros animais, uma vez que, nas matérias analisadas,diversos traços culturais hegemônicos em nossa sociedade, como o especismo, o especismo seletivo e o valor apenas instrumental dos animais foram reproduzidos e/ou reforçados.

Num outro artigo, de 2016, elegi uma edição de um programa do Sem Fronteiras, também da Globo News, intitulado “Caçada a leão no Zimbábue comove o mundo”.

O estudo revelou elementos que foram silenciados, ou apareceram de forma incipiente no programa, como a crueldade e a violência subjacentes à caça, assim como o viés moral que lhe é inerente. A matéria também destinou muito tempo à biodiversidade, tema digressivo no contexto em pauta, e tratou a caça quase que exclusivamente sob suas dimensões técnicas e legais.

Por fim, em 2018, fui convidada por três colegas da Austrália a fazer parte do volume Social Marketing and its Influence on Animal Origin Food Product Consumption, no qual contribuí com o capítulo It’s the Speciesism, Stupid! Animal Abolitionism, Environmentalism, and the Mass Media. Nele discuti basicamente o papel dos meios de comunicação de massa na perpetuação de valores especistas, e de nossos estreitos paradigmas instrumentais e econômicos. A argumentação girou bastante, é claro, em torno dos impactos da pecuária e de como o jornalismo e a mídia em geral ajudam a promover essa indústria insustentável ética, social e ambientalmente.

O livro, para nossa alegria, foi um dos finalistas no International Book Awards de 2019, o que mostra o reconhecimento da importância do tema.

ANDA: Nós da ANDA estamos sempre fazendo a nossa parte, divulgando notícias do interesse dos animais. Mas não seria o caso de institucionalizar um projeto nesse sentido, quero dizer de observação da mídia?

PB: Concordo plenamente! Mas nem sempre temos tempo, forças e parcerias para realizar tudo o que queremos nessa jornada contra o pré-conceito especista. De fato, convencida da influência midiática na formação de valores e visões de mundo, cheguei a oficializar em 2017 o Projeto OMA – Observatório da Mídia para os Animais.

O projeto era uma parceria entre o departamento Deptº de Ecologia e Zoologia/UFSC, no qual eu era professora titular, e a ANDA.

O objetivo era monitorar e analisar matérias jornalísticas e peças publicitárias que envolvessem alguma forma de relação entre nós e os animais não humanos, ou que simplesmente utilizassem imagens de animais em seu conteúdo simbólico.

A análise visava averiguar se esses objetos de estudo contribuíam para reafirmar ou para abolir valores especistas.

Contudo, devido às volumosas demandas acadêmicas, à época, e à falta de parceiros para tocar a empreitada, o projeto não decolou. Ficou reduzido a intervenções e textos isolados, basicamente os textos citados aqui.

ANDA: Professora, poderíamos conversar ainda muito sobre esse assunto. Mas acho mais proveitoso que os leitores acessem seus trabalhos, uma vez que a maioria deles é de acesso livre. Para terminar, o que a professora diria para os profissionais das áreas de jornalismo, marketing, etc?

PB: Acho que o que discutimos aqui mostra a necessidade de mudanças na formação dos profissionais dessas áreas, já que a presença de valores especistas não condiz com o ideal de isenção de valores propugnado pela maioria dos discursos sobre o conteúdo das matérias jornalísticas.

Fato é que, dos jardins de infância às universidades, a educação formal promove o especismo e a exploração animal de forma aberta, ostensiva, e orgulhosa, em praticamente todas as áreas do conhecimento. E na área do jornalismo isso não é diferente.

Termino citando o filósofo Karl Popper que nos adverte que todas as pessoas que viessem a trabalhar na televisão deveriam tomar consciência de que participam de um processo educacional de alcance gigantesco. No entanto, ele destaca que, ao abordar essa questão com profissionais da área, percebeu que tal ideia era uma novidade para eles.

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