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Bicho? Ajude as crianças com fome, ora!

30 de março de 2012
7 min. de leitura
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A Fiori é defensora dos animais e se chateia toda vez que sua atividade é criticada. O título deste texto é algo que a gente ouve todos os dias, só variando o assunto: por que falar de [insira aqui o assunto que você não considera importante]? Por que não falar das criancinhas na África ou da corrupção no congresso? Isso vindo de gente que quase sempre não luta nem por um nem pelo outro…

Prezada pessoa que faz comentários especistas do tipo “tanta gente gastando com bicho tendo um monte de crianças na rua”, quero lhe informar que ajudar um animal necessitado não impede ninguém de ajudar uma criança necessitada. Muito pelo contrário, as pessoas que doam seu tempo, energia e dinheiro para ajudar, não o fazem baseadas em espécie, raça, gênero etc, mas sim ajudam todos que cruzam seu caminho. Essas pessoas, que também ajudam animais, sofrem muito preconceito pela ignorância repetida incansavelmente pelas pessoas que não fazem nada por ninguém. Em contrapartida, a questão poderia ser: “tanta gente fazendo filho tendo um monte de criança nas ruas e nos abrigos precisando de adoção”, e “tanta gente cruzando e vendendo cachorro de raça tendo um monte de animais abandonados nas ruas e nos abrigos precisando de adoção”, mas essas são questões que a sociedade se recusa a entrar, pois é muito mais fácil dizer que a minoria que ajuda animais não deveria fazer o que faz, e que deveria fazer alguma outra c isa, do que admitir: “eu deveria estar fazendo alguma coisa também”.

Enquanto 98% não assumem sua responsabilidade, e 2% assumem as próprias responsabilidades e as dos outros 98%, que são o bem estar de seus dependentes, pois crianças, idosos, pessoas com necessidades especiais e animais domesticados não invadem a casa de ninguém, eles são de responsabilidade desses seres humanos adultos. Quem abandona seu animal também abandona os pais idosos em abrigos, e quem é capaz de negar ajuda a um cão morrendo na rua, também é capaz de negar ajuda a uma criança. Eu, que já recolhi e encontrei lar para mais de 50 animais, também já recolhi da rua e levei para dentro da minha casa três pessoas desconhecidas, enquanto centenas de pessoas apenas assistiam essas pessoas morrendo. Essas pessoas foram: uma transexual que foi degolada durante a madrugada em São Paulo, um garoto viciado em crack que foi abandonado pela família, e um homem alcoólatra que precisava de um voto de confiança para poder voltar a trabalhar. Nos três casos, acolhi as pessoas no mesmo dia que as conheci, e confiei neles assim como confio que o cachorro abandonado que eu recolho nunca vai me morder. Mas o ser humano é muito diferente dos cães, e não é porque minhas tentativas de ajudar seres humanos em situações tão extremas não foram 100% bem sucedidas que irei me negar a ajudar um ser humano novamente. É por saber da dificuldade que é ajudar um ser humano, e da “facilidade” (em comparação) que é ajudar um animal, que esse discurso hipócrita que você faz me incomoda tanto, pois sei que quem é capaz de assistir um cão morrendo sozinho na rua sem fazer nada, é incapaz de ajudar criança alguma. Se muito, temos os que fazem da “filantropia” uma profissão, e podemos ver toda a mecânica disso no filme Quanto Vale ou é Por Quilo.

Uma coisa que sempre me perguntei, mesmo antes de ajudar qualquer um, foi o porquê de tanta gente se incomodar por alguém estar gastando seu dinheiro para ajudar X enquanto Y também está precisando, e ninguém se incomodar por todos estarem gastando dinheiro indo a jogos de futebol, baladas, comprando bolsas e trocando de carro, enquanto X e Y estão precisando. Eu, como protetora de animais e de seres humanos em situação de risco, não vou a jogos de futebol e baladas, só compro vestimentas e acessórios usados e cuido muito bem do meu fusquinha, que me possibilita levar pessoas e animais a qualquer hora para hospitais, pois é apenas com esse tipo de sacrifício de vida pessoal que os 2% conseguem dinheiro para assumir as responsabilidades negligenciadas dos outros 98%, e o mínimo que esta porcentagem exorbitante poderia fazer é respeitar o nosso trabalho.

Um rapaz chamado Francisco José Papi escreveu um texto em 2005 que sanou muito bem essa minha dúvida. Reproduzo o texto na esperança que você o leia, e assim não repita mais esse tipo de ignorância.

“Por que não vão defender as crianças com fome?”

Questão interessante. Vamos ver se essa eu consigo responder de modo didático.

1) Quem faz esta pergunta admite que existem dois tipos de pessoas no mundo:

As Pessoas Que Ajudam e as Pessoas Que Não Ajudam.

Além disso, admite também que faz parte das Pessoas Que Não Ajudam, afinal, do contrário, diria “Por que não me ajudam a defender as crianças com fome?”, ou “Venham defender comigo as crianças com fome!”, ou “Não, obrigada, vou defender as crianças com fome”.

Então a pessoa se coloca claramente através de sua escolha de palavras como uma Pessoa Que Não Ajuda.

É curioso que a Pessoa Que Não Ajuda não faz nenhum esforço para ajudar, mas, sim, para tentar dirigir as ações das Pessoas Que Ajudam. É bastante interessante. Eu estaria interferindo se eu fosse até sua casa organizar sua vida financeira sob a alegação de que eu sei muito mais sobre administração familiar, mas a pessoa se sente no direito de interferir nas ações que uma pessoa resolve tomar para aliviar os problemas que ela encontra ao seu redor. É uma Pessoa Que Não Ajuda, mas ainda assim quer decidir quem merece ajuda das Pessoas Que Ajudam. O nome disso é prepotência.

2) Pessoas Que Ajudam não vão ajudar as “crianças com fome”. Nem tampouco os “velhos”, os “doentes” ou os “despossuídos”. E sabe por quê?

Porque “crianças com fome” ou “velhos” ou qualquer outro desses é abstrato demais. Não têm face, não são ninguém. São figuras de retóricas de quem gosta de comentar sobre o estado do mundo atual enquanto beberica seu uisquezinho no conforto de sua casa.

Pessoas Que Ajudam agem em cima do que existe, do que elas podem ver, do que lhes chama atenção naquele momento. Elas não ajudam “os velhos”, elas ajudam “com 50 reais por mês os velhos do asilo X”.

Elas não ajudam “as crianças com fome”, elas ajudam “as crianças do orfanato Y com a conta do supermercado”.

Elas não ajudam “os doentes”, elas ajudam o “Instituto da Doença Z com uma tarde por semana contando histórias aos pacientes”.

Pessoas Que Ajudam não ficam esperando esses seres vagos e difusos como as “crianças com fome” baterem na porta da sua casa e perguntar se elas podem lhe ajudar.

Pessoas Que Ajudam cobram das autoridades punição contra quem maltrata uma cadela.

Pessoas Que Ajudam dão auxílio a um pai ou uma mãe que perdeu o emprego e não tem como sustentar seus filhos por um tempo.

Pessoas Que Ajudam dão aulas de graça para crianças de um bairro pobre.

Pessoas Que Ajudam levantam fundos para que alguém com uma doença rara possa ir se tratar no exterior.

Pessoas Que Ajudam não fogem da raia quando veem qualquer coisa em que elas possam ser úteis. Quem se preocupa com algo tão difuso e sem cara como as “crianças com fome” são as Pessoas Que Não Ajudam.

3) Pessoas Que Ajudam são incrivelmente multitarefa, ao contrário da preocupação que as Pessoas Que Não Ajudam manifestam a seu respeito. (Preocupação até justificada porque, afinal, quem nunca faz nada realmente deve achar que é muito difícil fazer alguma coisa, quanto mais várias).

O fato de uma Pessoa Que Ajuda se preocupar com a punição de quem burlou a lei e torturou um animal não significa que ela forçosamente comeu o cérebro de criancinhas no café da manhã. Não existe uma disputa de facções entre Pessoas Que Ajudam, tipo “humanos versus animais”.

Geralmente as Pessoas Que Ajudam, até por estarem em menor número, ajudam várias causas ao mesmo tempo. Elas vão onde precisam estar, portanto muitas das Pessoas Que Ajudam que acham importante fazer valer a lei no caso de maus tratos a um animal são pessoas que ao mesmo tempo doam sangue, fazem trabalho voluntário, levantam fundos, são gentis com os menos privilegiados e batalham por condições melhores de vida para aqueles que não conseguem fazê-lo sozinhos.

Então, como dizia meu avô, “muito ajuda quem não atrapalha”. Porque a gente já tem muito trabalho ajudando animais e pessoas que precisam (algumas até poderiam ser chamadas tecnicamente de “crianças com fome”, se assim preferirem as Pessoas Que Não Ajudam).

Lola Aronovich

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