Uma cena inusitada chamou a atenção de biólogos e amantes da natureza em Paulínia, quando Marlene Campos, uma moradora local, flagrou no quintal de casa um beija-flor-tesoura alimentando o filhote de uma outra espécie, algo incomum entre os beija-flores.
O tesourão tratou um besourinho-de-bico-vermelho, um beija-flor bem menor que ele e também amplamente distribuído no Brasil. A constatação levanta questões sobre interações entre espécies e a adaptabilidade das aves.
Nascida em Panorama (SP), Marlene mora em Paulínia há oito anos. Apaixonada pela natureza desde a infância, ela mantém em seu quintal uma árvore frutífera chamada Callicarpa (Callicarpa reevesii) e um comedouro recheado de frutas e quirela para atrair aves das mais diversas espécies, como canarinho, sanhaço, garibaldi, periquito-de-encontro-amarelo e bico-de-lacre.
Desde o dia 25 de agosto, quando a fêmea de besourinho começou a chocar seus ovos, Marlene notou a presença constante de uma fêmea de beija-flor-tesoura.
“Achei estranho ver a fêmea de tesoura arrumando o ninho, mesmo com a mãe do besourinho lá. Mas depois a vi alimentando o filhote”, conta emocionada.
Regina Manzur, vizinha e observadora de aves, foi chamada por Marlene para registrar o fenômeno. “Achei muito estranho, pois nunca tinha ouvido falar sobre isso. Fiquei surpresa e fiz de tudo para conseguir filmar”, relata.
Ela usou tanto uma lente superzoom quanto o celular para registrar o comportamento. “Foi necessário me esconder, pois as aves só se alimentavam quando não havia movimento por perto”.
Comportamento inusitado
O comportamento do beija-flor-tesoura intrigou biólogos, como a especialista Nathália Diniz, que explica que esse tipo de interação entre espécies é extremamente raro.
De acordo com ela, existem poucos registros na literatura científica, todos fora da América do Sul. No Brasil, o único registro que ela tem conhecimento é de um beija-flor-tesoura alimentando filhotes de sabiá-barranco, apresentado em congresso.
“Esse comportamento de um beija-flor alimentar filhotes de outra espécie pode estar relacionado a fêmeas que, por exemplo, perderam seus próprios filhotes, estão com seu ninho ativo ou não conseguiram encontrar um parceiro reprodutivo. Além disso, a vocalização de alerta dos filhotes pedindo comida pode servir como um gatilho para desencadear essa interação”, explica Nathália.
Para a bióloga, a coexistência das duas espécies pode ser explicada pela dinâmica de seus habitats.
“A fêmea de besourinho é menor e não teria vantagem em um conflito com a fêmea do beija-flor-tesoura, que é uma espécie maior e altamente territorial. Essa dinâmica pode ter levado a fêmea de besourinho a, de certa forma, ‘tolerar’ a presença da fêmea do beija-flor-tesoura em seu ninho, evitando assim um conflito que seria prejudicial para ela”, completa.
Segundo o biólogo Vítor Piacentini, também especialista em beija-flores, não é esperado que uma espécie alimente filhotes de outra.
Ciência cidadã
A observadora de aves Regina Manzur reforça sobre a importância de registrar tais eventos. “Esse tipo de interação revela como as aves podem se adaptar e cooperar, contribuindo para uma compreensão mais rica da avifauna”, afirma.
A repercussão do caso resultou na recomendação de que as observações fossem registradas em plataformas de ciência cidadã, como Wikiaves e e-Bird, ampliando o conhecimento sobre a biodiversidade.
O caso do beija-flor-tesoura alimentando um filhote de besourinho em Paulínia não só surpreendeu os moradores, mas também enriqueceu a discussão sobre as complexas relações entre as aves na natureza, abrindo espaço para futuras pesquisas e observações sobre a avifauna local.
Fonte: G1