Casos de abandono e maus-tratos a animais comovem a população rotineiramente. Mas o que existe por trás desta causa nobre? Quem são as pessoas que batalham todos os dias para garantir uma vida digna a animais com um histórico de dor e sofrimento? Para responder a essas perguntas, a Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) conversou com exclusividade com a protetora de animais Ana Cavalcanti. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
ANDA: Há quanto tempo você está na proteção animal e quantos animais, em média, você já ajudou – através de resgates e outras ações?
Ana Cavalcanti: Oficialmente, estou na proteção animal desde 2016, mas sempre tive animal resgatado da rua. Quando eu era adolescente , eu tinha 16 gatos. Claro que não tinha a consciência que eu tenho hoje em relação a castrar ou vacinar, criar dentro de casa, sem acesso à rua. Mas desde criança eu tenho animal.
Sobre os animais que já ajudei, somando resgates, adoções, castrações e ações que realizei dentro de ocupações, ajudei em torno de 300 animais. Dentre eles, prestei auxílio não só a animais abandonados, mas também a alguns que têm tutor, mas vivem com famílias carentes, que precisam de ajuda para cuidar deles.
ANDA: O que te fez decidir entrar para a proteção animal?
Ana Cavalcanti: Não foi uma escolha racional. Eu não decidi um dia “vou resgatar animais”. Sempre levei ração na bolsa e no carro para alimentar os animais que vivem na rua. Em 2016, comecei a saber de animais atropelados, envenenados, e pensei que aqueles animais não poderiam continuar na rua, já que corriam riscos. E aí, sob influência de uma amiga minha, que inclusive foi a primeira pessoa vegetariana que conheci, há uns 10 anos, comecei a resgatar.
ANDA: Qual animal que passou pela sua vida que te marcou mais?
Ana Cavalcanti: Um dos animais que mais me marcou foi o Negão. Hoje ele dorme na cama comigo. Eu cuidava dele na rua, ele era um cão comunitário. Foi diagnosticado com um TVT (tumor venéreo canino transmissível) raro, teve que ser operado, mas já se recuperou. Antes de trazê-lo para minha casa, tentei doá-lo quatro vezes. Ele chorava, pulava o muro das casas e fugia para a rua. Na época, ele sumiu. Ficou 16 dias desaparecido. Quando o encontramos, parecia que um filho meu tinha nascido de tanta felicidade. Desde então, ele mora comigo, dentro de casa.
Outro animal que me marcou foi a Menina, uma cadela que resgatei em Valinhos (SP). Já tem uns 7 anos que ela morreu. Foi muito marcante para mim porque ela foi resgatada com um tumor no baço, já com metástase, e pela primeira vez tive que decidir sacrificar um animal. A veterinária iniciou a cirurgia dela, me ligou e disse que ela não sobreviveria nem mais dois meses e sofreria muito. Foi muito difícil decidir e, para piorar, isso aconteceu no dia do meu aniversário. Chorei muito e tive que lidar com a morte dela, que foi induzida para poupá-la de mais dor.
O Gatão também me marcou muito. Tive que levá-lo em uma veterinária especialista em gatos, após passar por profissionais que não conseguiam descobrir o que ele tinha. Essa veterinária que atendeu é especialista em comportamento. Ela me explicou que existem gatos que ficam ariscos, fogem e se defendem unhando e mordendo, e outros que travam completamente – por conta de traumas e da vida na rua. Os mais comuns são os do primeiro tipo. O Gatão, no entanto, estava entre o segundo. Ele congelava, ficava parado, em pânico, com a aproximação das pessoas. Hoje, após ter sido resgatado e adotado por uma boa família, é um gato super carinhoso, muito fofo. Vendo-o na rua, nunca imaginei que ele se transformaria tanto.
ANDA: Você falou que teve que lidar com a difícil decisão de autorizar o sacrifício de um animal para aliviar o sofrimento dele. Quais sentimentos você já vivenciou por conta da proteção animal?
Ana Cavalcanti: Impotência é o principal sentimento – faço até terapia para aprender a lidar com isso. É a impotência de saber que tudo depende de dinheiro – e eu acho justo que veterinário cobre mesmo, ele precisa sobreviver, mas é difícil – e de não poder ajudar mais animais do que já ajudo. Mas têm sentimentos bons também. Nem sei mensurar o tamanho da minha felicidade ao ver animais que tirei da rua vivendo em bons lares. Recebo fotos, áudios dos tutores frequentemente e fico tão feliz. Não tem preço. Mas também sinto raiva. Raiva ao ver as pessoas insistindo em comprar animais, colaborando com um mercado que os explora e maltrata ao invés de adotar os que precisam de lares. E tem também meu sentimento ao ver a reação das pessoas a minha militância. Eu tinha amigo no Facebook que me excluiu por causa das coisas que eu posto, mas não vou deixar de militar para ter a aceitação das pessoas. E nessa militância entra não só a proteção animal, como o veganismo. De dois anos para cá, não consigo pensar na proteção animal sem estar de mãos dadas com o ativismo pelo veganismo. E é por isso que eu tenho muito orgulho do Cantar Faz Bem Pra Cachorro, um evento que organizo com a ajuda de outras pessoas.
ANDA: Você falou do Cantar Faz Bem Pra Cachorro. Como surgiu a ideia de realizar esse evento e como ele é realizado? Fale mais do evento.
Ana Cavalcanti: Tudo começou quando resgatei a Amora. Toda noite eu vou às ruas para alimentar animais. Numa determinada noite, vi a Amora em meio a vários cães machos, tentando cruzar com ela. Coloquei ração para eles e fiquei observando qual era fêmea, para resgatá-la. Foi então que ela se assustou, correu em direção a uma avenida e foi atropelada. Ouvi o barulho e pensei que ela tivesse morrido. Comecei a chorar. Cheguei perto. O carro não passou em cima dela, mas acertou a cabeça dela, deixando-a por cerca de três meses com sequelas neurológicas, que foram tratadas. Quando falei do resgate para a Fátima, dona do bar Vila Bambu, ela sugeriu que fizéssemos um evento para arrecadar fundos para o tratamento da Amora. Assim nasceu o Cantar Faz Bem Pra Cachorro, que teve o nome escolhido pela Fátima.
No próximo dia 29 de março, iremos realizar a 13ª edição. Sempre no bar da Fátima, sempre com músicos e cantores fazendo música ao vivo, sempre com comida vegana e com toda a renda revertida para os animais abandonados. Me ajuda muito a pagar as contas das clínicas veterinárias. Costumamos fazer o evento a cada dois meses, aos domingos. E além de me ajudar muito financeiramente, o Cantar Faz Bem Pra Cachorro me deixa muito feliz por conta do sucesso que a comida vegana faz. Já fizemos yakisoba, feijoada e chilli. A maior parte do público não é vegana, mas a comida sempre acaba, porque todo mundo come, repete, adora, e volta nas outras edições. Para mim, isso é também uma forma de militar em prol do veganismo. Tenho muito orgulho do evento.
ANDA: Além da aparência física e da questão de saúde, qual mudança você vê no comportamento dos animais após o resgate que demonstra que eles tiveram a vida transformada?
Ana Cavalcanti: A Amora sentia tanto medo das pessoas que foi atropelada justamente porque correu para a avenida assustada. A Pitty também era quieta e medrosa. O Pepe não deixava ninguém chegar perto e mordia quem insistisse. Hoje, ele vira a barriga para cima, brinca, acorda me lambendo. Os animais sentem uma confiança, sentem o amor que a gente dá para eles. A maioria, no entanto, leva muito tempo para mudar o comportamento, meses, até anos, principalmente os adultos que sofreram maus-tratos.
Não sei nem descrever para você a mudança que o animal passa após o resgate. Tem animal que evolui tanto emocionalmente que isso afeta o físico, o pelo fica mais bonito, engorda, a recuperação de algum problema de saúde acontece de maneira mais rápida. Parece que o organismo dele se abre àquela nova energia, a imunidade fica mais forte.
ANDA: O que você acha que falta em nossa sociedade em relação ao respeito e cuidado com os animais?
Ana Cavalcanti: Acho que as pessoas têm que parar de comprar animais, mas não só. Nossa sociedade é especista. A educação precisa vir da base. Além da questão de políticas públicas. O castramóvel, por exemplo. Em Campinas, na minha cidade, tem castramóvel, mas é preciso ser melhor divulgado, muita gente nem sabe que existe. As ações de castração realizadas em cada bairro precisam de mais divulgação, para ter mais adesão. Creio também que a questão da proteção animal deveria ser ensinada nas escolas. Falar com os alunos sobre o respeito aos animais, incentivá-los a não abandonar, explicar que abandono é crime, abordar a necessidade de adotar ao invés de comprar, questões assim.
É preciso ensinar que os animais não estão no planeta para servir às pessoas. A cadela não existe para ser forçada a procriar para alguém ganhar dinheiro vendendo os filhotes. O cavalo não existe para ser obrigado a carregar peso puxando uma carroça ou charrete.
As pessoas também precisam ter mais iniciativa, parar de querer repassar casos de animais abandonados e maltratados para ONGs e protetores e começar cada um a fazer sua parte. Faz vaquinha, arrecada recursos, paga o veterinário, dá lar temporário, doa. Não fica esperando sentado.
ANDA: Sobre conscientização, você acha que as pessoas estão mais conscientes, mais abertas em relação a ideia de, por exemplo, adotar um animal?
Ana Cavalcanti: Acho que as pessoas estão se tornando mais conscientes. Viajo às vezes para São Paulo a trabalho, vou em bairros nobres e vejo pessoas tutelando cães sem raça definida, adotados. Tem gente deixando de comer produtos de origem animal. Outros, embora ainda comam, já se conscientizaram sobre os testes e optam por produtos não testados em animais. Ainda tem muito o que evoluir, mas melhorou sim.
ANDA: Qual a maior dificuldade que você enfrenta na proteção animal?
Ana Cavalcanti: Dinheiro. A maior dificuldade é o dinheiro. Tudo custa muito caro. Por exemplo, um hemograma humano custa, em média, R$ 15. O do animal é R$ 40. Precisei me submeter a um exame de ultrassom, paguei R$ 40. O dos animais que resgato não sai por menos de R$ 150. Medicação também é caro. E ninguém quer deixar de gastar um pouco consigo mesmo para ajudar os animais. Então fica díficil, com poucas doações, pouca ajuda.
ANDA: Se você pudesse deixar um recado para os animais que já passaram pela sua vida, o que você diria a eles?
Ana Cavalcanti: Eu diria para eles que faço tudo com muito amor e que se pudesse, faria por muitos outros. E se fosse possível voltar no tempo, faria melhor do que fiz. Quero que eles sejam muito felizes, que aproveitem o resto de suas vidas com suas famílias. Eu falaria para eles que sou muito grata pela oportunidade de fazer o que faço por eles e que a proteção animal me mostrou que sou mais forte do que eu pensava ser. E para cada animal que eu ajudei, eu fui muito mais ajudada. Evolui muito como ser humano, melhorei, aprendi sobre empatia, paciência, compaixão, inclusive com as pessoas, com outras causas. Hoje sou uma pessoa melhor por causa deles. E não quero parar. Dei uma freada nos resgates por conta do meu psicológico. Preciso me cuidar para seguir cuidando deles. Mas não consigo ver minha vida longe deles, longe da militância. Penso, em primeiro lugar, sempre no sofrimento deles.
E tudo me aconteceu meio que ao mesmo tempo: veio a proteção animal, logo veio também o veganismo. Sou vegana pelos animais, por defender a preservação do meio ambiente e entender o quanto o consumo de produtos de origem animal prejudica a natureza e, como consequência, ainda garanto uma saúde melhor para mim e a consciência leve.
Interessados em conhecer mais o trabalho voluntário da Ana Cavalcanti na proteção animal e auxiliar por meio de doações, lar temporário ou adoção, podem entrar em contato com a ativista através do Facebook ou pelo WhatsApp, no número: (19) 99817-3741.