A propulsão a hidrogênio começa a ganhar escala no setor naval e promete transformar a navegação no Brasil, reduzindo as emissões de carbono e os custos operacionais de longas viagens pelas águas do país. Com embarcações capazes de operar sem queimar uma gota de diesel, e, portanto, sem lançar CO₂ na atmosfera, a tecnologia surge como alternativa estratégica para um dos modais mais dependentes de combustíveis fósseis no país, abrindo caminho para uma nova era de transporte fluvial limpo, silencioso e mais eficiente.
As emissões do setor naval vêm ganhando atenção no Brasil, especialmente após a divulgação do primeiro Inventário de Gases de Efeito Estufa do transporte aquaviário, conduzido pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). O levantamento mostra que, mesmo com leve redução nos últimos anos, o modal ainda lançou 2,76 milhões de toneladas equivalentes de carbono em 2023, somando CO₂, metano e óxido nitroso — gases provenientes sobretudo da queima de diesel em embarcações de cabotagem e navegação interior.
Em 2021, o índice havia se aproximado de 3 milhões de toneladas, reforçando o peso climático de um setor que, apesar de mais eficiente por tonelada transportada do que o rodoviário ou o aéreo, continua amplamente dependente de combustíveis fósseis.
Na Amazônia, a urgência por soluções limpas é ainda maior. A região concentra cerca de 49% das emissões brasileiras e boa parte desse impacto se distribui ao longo dos corredores logísticos que dependem da navegação fluvial. Embora o desmatamento seja o maior vetor de gases de efeito estufa, o transporte regional também colabora para o volume de CO₂ liberado na atmosfera, impulsionado por frotas antigas, uso intensivo de diesel e dificuldade de fiscalização.
O avanço de tecnologias de baixa ou zero emissão, como sistemas híbridos e a propulsão a hidrogênio, desponta como oportunidade para reduzir a pegada climática em uma das áreas mais sensíveis do planeta.
Foi nesse contexto que Belém recebeu, durante a COP 30, o lançamento do primeiro barco 100% movido a hidrogênio da América Latina. Desenvolvido pela Itaipu Parquetec, o BotoH2 tem 9,5 metros de comprimento, usa energia solar e será empregado no reforço da coleta seletiva de resíduos nas ilhas do Pará. A embarcação representa um passo simbólico num setor ainda dominado pelo diesel e sinaliza a chegada de soluções viáveis para rotas amazônicas. “Imagina isso sendo substituído por combustível limpo, o tanto de CO₂ que deixaríamos de emitir”, diz Alexandre Leite, diretor de Tecnologias da Itaipu Parquetec. Para ele, o hidrogênio inaugura uma nova fase para o segmento náutico, especialmente diante dos efeitos das mudanças climáticas na região.
A tecnologia também inspira projetos de transição gradual. Em parceria com a Itaipu Parquetec, o Grupo Náutica apresentou o JAQ H1, uma embarcação híbrida que combina motor a combustão com um sistema a hidrogênio capaz de zerar as emissões operacionais de gases de efeito estufa.
O presidente do grupo, Ernani Paciornik, explica que a proposta do barco é navegar sem agredir os biomas, levando conhecimento técnico e contribuindo para educação ambiental. “Acho que isso é especial: estamos fazendo algo pelo Brasil e pelos brasileiros, mostrando que o setor privado também pode contribuir para inovação, sustentabilidade e desenvolvimento”, afirma.
O JAQ H1 foi projetado para múltiplas funções. Além de servir como laboratório flutuante, dispõe de um sistema capaz de combater incêndios, lançando jatos de água a até 140 metros de altura. Pode atuar em operações portuárias, transportar insumos ou funcionar como espaço para escolas ribeirinhas e atividades educativas, com um auditório instalado a bordo.
Para a realidade amazônica, em que rotas podem levar dias, o impacto econômico também é significativo. Uma viagem entre Belém e Manaus, por exemplo, consome cerca de 4 mil litros de diesel em cinco dias. “Com um sistema como esse, você tem potencial para economizar esses quatro mil litros — é um impacto enorme”, afirma Rubinaldo Costa, capitão fluvial da Marinha Mercante.
Setor vive renovação
O interesse por soluções limpas também começa a mobilizar companhias tradicionais da navegação regional. Durante a COP 30, a Reicon — responsável por uma das linhas fluviais mais tradicionais do Norte — apresentou seu projeto Net Zero. O comandante Pelágio de Carvalho explica que, apenas em 2024, as embarcações do grupo lançaram cerca de 6 mil toneladas de carbono na atmosfera.
Para neutralizar essas emissões, a Reicon mantém uma reserva florestal que compensa o carbono liberado. Mas, segundo ele, o hidrogênio pode tornar esse processo totalmente dispensável. “Com uma embarcação movida a célula de hidrogênio, isso já viria automaticamente compensado. Você não precisaria da floresta, porque simplesmente não há emissão de carbono”, diz.
O comandante destaca que a empresa já iniciou a modernização da motorização da frota para reduzir emissões e vê no hidrogênio a rota mais promissora para o setor. “O mundo está querendo migrar para outra fonte de energia por causa da poluição. A tecnologia de hidrogênio já é real e comercialmente disponível. Temos interesse porque acreditamos que esse é o futuro da navegação”, afirma.
O grupo atua no Pará, na Amazônia, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, operando embarcações que hoje já emitem até cinco vezes menos CO₂ por tonelada transportada do que caminhões, mas que continuarão dependentes de combustíveis fósseis enquanto a transição não se acelerar.
A maturidade da tecnologia usada nesses barcos também ajuda a explicar a velocidade da transição. Davi Lopes, head de hidrogênio da GWM Brasil e América Latina, lembra que a célula a combustível foi desenvolvida na década de 1970 para missões espaciais. “Assim como a fotovoltaica começou lá, a célula de hidrogênio veio para gerar energia elétrica sem emissão de gases do efeito estufa e sem poluentes”, diz.