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MENOS EMISSÕES

Barcos movidos a hidrogênio são alternativas para a descarbonização do setor náutico

Tecnologia promete zerar emissões de CO₂ em embarcações e pode mudar o futuro da navegação nas regiões mais vulneráveis às mudanças climáticas

13 de dezembro de 2025
Camila Azevedo
10 min. de leitura
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Belém recebeu, durante a COP 30, o lançamento do primeiro barco 100% movido a hidrogênio da América Latina. Foto: Divulgação/Victor de Oliveira Santos e Uirá Dantas @revistanautica

A propulsão a hidrogênio começa a ganhar escala no setor naval e promete transformar a navegação no Brasil, reduzindo as emissões de carbono e os custos operacionais de longas viagens pelas águas do país. Com embarcações capazes de operar sem queimar uma gota de diesel, e, portanto, sem lançar CO₂ na atmosfera, a tecnologia surge como alternativa estratégica para um dos modais mais dependentes de combustíveis fósseis no país, abrindo caminho para uma nova era de transporte fluvial limpo, silencioso e mais eficiente.

As emissões do setor naval vêm ganhando atenção no Brasil, especialmente após a divulgação do primeiro Inventário de Gases de Efeito Estufa do transporte aquaviário, conduzido pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). O levantamento mostra que, mesmo com leve redução nos últimos anos, o modal ainda lançou 2,76 milhões de toneladas equivalentes de carbono em 2023, somando CO₂, metano e óxido nitroso — gases provenientes sobretudo da queima de diesel em embarcações de cabotagem e navegação interior.

Em 2021, o índice havia se aproximado de 3 milhões de toneladas, reforçando o peso climático de um setor que, apesar de mais eficiente por tonelada transportada do que o rodoviário ou o aéreo, continua amplamente dependente de combustíveis fósseis.

Na Amazônia, a urgência por soluções limpas é ainda maior. A região concentra cerca de 49% das emissões brasileiras e boa parte desse impacto se distribui ao longo dos corredores logísticos que dependem da navegação fluvial. Embora o desmatamento seja o maior vetor de gases de efeito estufa, o transporte regional também colabora para o volume de CO₂ liberado na atmosfera, impulsionado por frotas antigas, uso intensivo de diesel e dificuldade de fiscalização.

O avanço de tecnologias de baixa ou zero emissão, como sistemas híbridos e a propulsão a hidrogênio, desponta como oportunidade para reduzir a pegada climática em uma das áreas mais sensíveis do planeta.

Foi nesse contexto que Belém recebeu, durante a COP 30, o lançamento do primeiro barco 100% movido a hidrogênio da América Latina. Desenvolvido pela Itaipu Parquetec, o BotoH2 tem 9,5 metros de comprimento, usa energia solar e será empregado no reforço da coleta seletiva de resíduos nas ilhas do Pará. A embarcação representa um passo simbólico num setor ainda dominado pelo diesel e sinaliza a chegada de soluções viáveis para rotas amazônicas. “Imagina isso sendo substituído por combustível limpo, o tanto de CO₂ que deixaríamos de emitir”, diz Alexandre Leite, diretor de Tecnologias da Itaipu Parquetec. Para ele, o hidrogênio inaugura uma nova fase para o segmento náutico, especialmente diante dos efeitos das mudanças climáticas na região.

A tecnologia também inspira projetos de transição gradual. Em parceria com a Itaipu Parquetec, o Grupo Náutica apresentou o JAQ H1, uma embarcação híbrida que combina motor a combustão com um sistema a hidrogênio capaz de zerar as emissões operacionais de gases de efeito estufa.

O presidente do grupo, Ernani Paciornik, explica que a proposta do barco é navegar sem agredir os biomas, levando conhecimento técnico e contribuindo para educação ambiental. “Acho que isso é especial: estamos fazendo algo pelo Brasil e pelos brasileiros, mostrando que o setor privado também pode contribuir para inovação, sustentabilidade e desenvolvimento”, afirma.

O JAQ H1 foi projetado para múltiplas funções. Além de servir como laboratório flutuante, dispõe de um sistema capaz de combater incêndios, lançando jatos de água a até 140 metros de altura. Pode atuar em operações portuárias, transportar insumos ou funcionar como espaço para escolas ribeirinhas e atividades educativas, com um auditório instalado a bordo.

Para a realidade amazônica, em que rotas podem levar dias, o impacto econômico também é significativo. Uma viagem entre Belém e Manaus, por exemplo, consome cerca de 4 mil litros de diesel em cinco dias. “Com um sistema como esse, você tem potencial para economizar esses quatro mil litros — é um impacto enorme”, afirma Rubinaldo Costa, capitão fluvial da Marinha Mercante.

Setor vive renovação

O interesse por soluções limpas também começa a mobilizar companhias tradicionais da navegação regional. Durante a COP 30, a Reicon — responsável por uma das linhas fluviais mais tradicionais do Norte — apresentou seu projeto Net Zero. O comandante Pelágio de Carvalho explica que, apenas em 2024, as embarcações do grupo lançaram cerca de 6 mil toneladas de carbono na atmosfera.

Para neutralizar essas emissões, a Reicon mantém uma reserva florestal que compensa o carbono liberado. Mas, segundo ele, o hidrogênio pode tornar esse processo totalmente dispensável. “Com uma embarcação movida a célula de hidrogênio, isso já viria automaticamente compensado. Você não precisaria da floresta, porque simplesmente não há emissão de carbono”, diz.

O comandante destaca que a empresa já iniciou a modernização da motorização da frota para reduzir emissões e vê no hidrogênio a rota mais promissora para o setor. “O mundo está querendo migrar para outra fonte de energia por causa da poluição. A tecnologia de hidrogênio já é real e comercialmente disponível. Temos interesse porque acreditamos que esse é o futuro da navegação”, afirma.

O grupo atua no Pará, na Amazônia, no Rio de Janeiro e em Pernambuco, operando embarcações que hoje já emitem até cinco vezes menos CO₂ por tonelada transportada do que caminhões, mas que continuarão dependentes de combustíveis fósseis enquanto a transição não se acelerar.

A maturidade da tecnologia usada nesses barcos também ajuda a explicar a velocidade da transição. Davi Lopes, head de hidrogênio da GWM Brasil e América Latina, lembra que a célula a combustível foi desenvolvida na década de 1970 para missões espaciais. “Assim como a fotovoltaica começou lá, a célula de hidrogênio veio para gerar energia elétrica sem emissão de gases do efeito estufa e sem poluentes”, diz.

A tecnologia funciona por meio de uma reação eletroquímica entre hidrogênio e oxigênio, com eficiência até duas vezes maior que a de motores a combustão e com água como único subproduto.

No caso do JAQ H1, a embarcação híbrida lançada em Belém, a estrutura inclui uma célula de 120 kW e um conjunto de baterias capazes de manter o barco autônomo por até 20 dias. “Com 130 quilos de hidrogênio, consigo deixar essa embarcação autônoma por 20 dias. Se fosse diesel, seriam cem litros por dia — economizaria cerca de 20 mil litros”, afirma Lopes.

Ele lembra que essa é a primeira embarcação híbrida com hidrogênio desenvolvida integralmente pela iniciativa privada. A célula a combustível alimenta toda a parte elétrica e parte do hidrogênio entra na mistura dos motores, em cerca de 20%, exigindo adaptações específicas. Para o engenheiro, trata-se de um caminho progressivo. “É uma etapa do projeto para entender como a tecnologia vai funcionar no Brasil e também descarbonizar”.

Para ele, o avanço depende da interação entre projetos privados, centros de pesquisa e políticas públicas que reconheçam o hidrogênio como vetor estratégico da nova economia verde. Se o combustível vencer barreiras de custo e infraestrutura, pode abrir caminho para transformar a navegação brasileira, especialmente na Amazônia.

Movimento faz parte de uma corrida internacional

Além dos avanços práticos em embarcações híbridas e 100% a hidrogênio, especialistas reforçam que o movimento observado no Brasil não é experimental, mas parte de uma corrida internacional por combustíveis marítimos de baixíssima emissão. Para a diretora executiva da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (ABIHV), Fernanda Delgado, os projetos apresentados durante a COP 30, tanto os que usam hidrogênio diretamente quanto os que apostam em amônia, um derivado do hidrogênio, mostram a maturidade e a viabilidade tecnológica do setor.

“Esses barcos são protótipos, mas comprovam que já existe tecnologia pronta para combustíveis marítimos limpos. A grande aposta da IMO, a agência marítima da ONU, é justamente oferecer soluções de baixíssima emissão de CO₂ para cumprir metas globais de descarbonização. Não estamos falando de futuro: estamos falando de uma tecnologia completamente atual”, afirma.

Segundo ela, motores a metanol e a amônia já estão em operação em navios internacionais e a tendência é que esses combustíveis se tornem cada vez mais comuns nos próximos anos. O desafio, no entanto, é a escala. O hidrogênio verde ainda é mais caro do que o hidrogênio cinza — este último produzido a partir de gás natural e amplamente utilizado no Brasil, que fabrica cerca de 500 mil toneladas por ano para setores como refino de petróleo e indústria alimentícia. “O que precisamos é fornecer hidrogênio como solução energética de baixo carbono, usando solar, eólica e hidráulica. Quanto mais rápido ganharmos escala, mais baixo será o preço para competir com o hidrogênio cinza”, explica.

Fernanda destaca que o Brasil reúne vantagens únicas para liderar essa transição: matriz elétrica 93% renovável no Nordeste, áreas disponíveis em zonas portuárias, excelente posição geopolítica e instituições reconhecidas internacionalmente por sua governança energética. “O país tem todos os fundamentos mercadológicos para ter o hidrogênio mais barato do mundo até 2030. Mas precisamos avançar na regulação”, diz, referindo-se às leis 14.748 e 14.990, aprovadas em 2024.

O setor espera agora a regulamentação que definirá como serão distribuídos os R$ 18 bilhões em incentivos públicos, quais critérios as empresas terão de cumprir e como funcionará o crédito fiscal para produtores de hidrogênio verde.

Fonte: Um só Planeta

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