É sério, naquela faculdade havia vários alunos boêmios que não hesitavam em matar aula em troca de uma rodada de cerveja no Bar Avenida. No início da confraria, o habitual gole do santo – tradição simbólica nem um pouco generosa para com os homenageados – era de lei. Quando isso acontecia, a noite ia longe. Mas o ritual acadêmico não se restringia à bebida. De quebra vinham também os petiscos, feitos invariavelmente de carne: salsichas tostadas, lingüiças gordurentas, churrasquinhos fumegantes, coisa e tal. Em meio àqueles estudantes festivos estava Gomes da Silva, o meu amigo poeta. Detalhe: ele era o único que pedia ao garçom, como acompanhamento, batatinha ou mandioca frita. Carne, jamais. Um dia calhou de eu lhe perguntar o porquê dessa dieta diferenciada e ele, com sua habitual discrição, sussurrou aos meus ouvidos uma frase pronta: por respeito a tudo o que vive e quer viver.
Gomes da Silva, ao contrário dos outros, era reflexivo e intimista. Coisas do signo, diriam aqueles que acreditam em astrologia. Se ele bebia antes das provas, segundo o próprio, era apenas “para relaxar”. Não apenas por isso, claro. Bebia para se inspirar e também para esquecer. Bebia, sobretudo, para escrever. Ele tinha 30 anos de idade, dez a mais que a média da classe, e sobrevivia a duras penas. Sua moradia em um apertado cubículo na Vila Mazzei, que ele bem retratou nos versos de “Concreto Armado”: “Quarto fechado/ janelas sem propósito/ cegas janelas de propósito sem luz”.
Pude perceber, durante o curso, que eu estava diante de um colega de fina sensibilidade, cujos excessos etílicos não representavam modismo ou simples futilidade, mas a sua forma de protesto. Afinal, nesse estado ele compôs poemas inspiradíssimos, tendo eu o privilégio de conhecer alguns deles na mesa do bar, recém-saídos do forno, como “O Passeio da Ilusão”: “Nunca deixe que uma avenida/ venha coloria sua vida/ Melhor é desencantá-la/ Há muita magia em toda esquina/ Os elementos que no tempo desfilam/ são frutos de alquimia antiga/ de Algo que os faz e desfaz/ monta e desmonta-os/ porque se desmancham na expectativa/ de aperfeiçoá-los na verdade divina/ Nunca deixe que uma só cor/ venha floria sua dor/ Lembre-se que há sempre outra vitrine/ na próxima vida/ É melhor olhá-la com olhos de antigas avenidas/ Diga-se de passagem: eu sou a ilusão/ e tudo mais é a realidade”.
Aos poucos nos tornamos grandes amigos, compartilhando assuntos que se tornaram obrigatórios aos estudantes daquela geração, que tinham Sangue de Coca-Cola, que cresceram entre Morangos Mofados, que conheciam O Jogo da Amarelinha e que pulsavam com as Veias Abertas da América Latina. Fazia parte desse jeito de ser, portanto, a arte, a política, a música e, inevitavelmente, a poesia. Gomes da Silva era avesso às badalações e propenso a certo niilismo, trazendo em sua alma de artista qualquer coisa de trágico e ao mesmo tempo grandioso. “Milênio em Minutos” expressa bem a inquietude de sua vida:
“Era tarde/ prelúdio de noite fria/ Trinta anos ou trinta dias/ acúmulo de um minuto/ em uma vida de solidão sofrida/ O túmulo de fez longe/ de tanto tempo perto de si/ A morte pode chegar hoje e perguntar/: – esqueceram-se de mim?/ Ou esqueceram-se da vida e me fizeram surgir? Tenho culpa de parecer tão trágico/ se durante toda a vida/ por tantos sou procurado?/ Portanto, tenho muito trabalho/ O rosto abatido, o corpo cansado/ que sou mal recebido quando encontrado/ e é fato consumado: cumpro meu dever/ Pois não há desculpas, e não seria lógico/ Eu, a morte, confiado por Deus/ aceitar o pedido de vida de um ser mortal/ Mortal a parte que me encarrego de separar/ Vida e morte, morte e vida/ Tudo isso é apenas vida/ Um processo embrionário, sempre embrionário”.
Recebi na mesa do Bar Avenida, certa vez, um de seus mais preciosos originais, ainda rabiscados no guardanapo de papel. Nunca tinha visto um poema tão belo sobre o amor despedaçado. Nunca alguém escrevera assim, com tamanha intensidade, sobre esse sentimento que move os céus e os astros. Mas nada como agora, na fria distância do tempo, conhecê-lo para saber do que estou falando. Chama-se “Sentimento Incognoscível”:
“Meu coração padece/ nesse sentimento incognoscível/ que me fez sonhador/ Oh minha amada/ já não sei mais onde/ esconder esse sentimento/ Escondi-o nos quatro cantos do infinito/ E em nenhum deles obtive tranqüilidade/ Quis escondê-lo no esquecimento/ esquecer de lembrar/ e apenas lembrava de esquecer/ Não sei… destruir talvez/ … só se fosse a mim mesmo/ Talvez escondê-lo na tua alma/ Nem assim… já sofro o desprezo/ Procurei a origem para conhecer e destruir/ mas aprendi tanto nesse caminho/ que acabei desistindo de desistir/ E desejando saber mais, continuei e construir/ Para que então esconder? Ele está nos lugares mais impossíveis/ Coloquei-o em tudo que pudesse tocar/ com a férrea esperança de encontrá-lo um dia/ Melhor que se dilua/ na quentura do sol, na frieza da lua/ Esteve escondido na minha voz, na minha fisionomia/ no meu físico, na minha alma, no meu lado místico/ Para que e por que isso? Quem sabe/ Só Deus sabe o quanto quero que o encontre/ para poder contar-lhe essa história/ De tanto esconder, acabei por esquecer aonde escondi/ De muito guardar e tirar, restou um pouco deste Amor/ em cada olhar meu às coisas do mundo/ Está na Terra, e no Sol, nas bilhões de galáxias/ Que a ciência desconhece e julga não existir”.
Anos depois mostrei este poema a uma renomada mestra em literatura da USP, que ficou embasbacada: – é algum inédito de Pessoa, uma nova estrela do Bandeira ou, quem sabe, uma pérola escondida de Leminski? – Respondi-lha sem hesitar: – Não, professora, apenas versos de um poeta anônimo. Gomes da Silva era essa voz urbana que não seria conhecida e nem celebrada por ninguém. Escrevia por escrever, de forma espontânea, como que para exprimir alguma coisa que lhe apertava o peito. Idealista, não aceitava a ditadura militar e nem a ditadura do consumo, propondo a libertação pelos caminhos da consciência ecológica. Mas não era nada fácil. Ser vegetariano em plena década de 80 era um convite à chacota e à gozação. Até a mulher que inspirou seus principais cantos de amor nunca se interessou pelas atitudes políticas e nem pelo romantismo do poeta.
Mas uma pergunta não quer calar: ele compôs alguma poesia pelos animais? Acho que sim, um soneto pra lá de engenhoso que, lamentavelmente, perdi, chamado “O Signo de Peixes”. Pelo que me recordo ele fez a comparação simbólica do homem oprimido pela sociedade com os peixes condenados à vida artificial no aquário. Queria dizer, no fundo, que os animais também tinham direitos. Também poderia ser uma parábola, uma analogia ou sei lá o que, agora já não importa. O fato é que este poema ajudou a construir em mim – naquele obscuro porão mental do qual nos fala o velho Sigmund – a consciência pelos direitos dos animais. Talvez todos nós, de alguma forma, tenhamos a percepção natural de que a liberdade não é apenas uma calça azul e desbotada, mais que isso, a liberdade é o mar aberto é o sol é a lua é o vento que nos faz navegar. Diabos, essa coisa de poesia pega mesmo…