A analista ambiental Eloisa Mendonça revisava os arquivos dos últimos meses da armadilha fotográfica, quando quebrou o silêncio com uma sonora gargalhada de alegria. “Gritei muito, comemorando”, lembra a servidora, que coordena o esforço de monitoramento de onças-pintadas na Reserva Biológica do Gurupi, no Maranhão. Imediatamente, seus colegas acharam que se tratava de uma onça que não era vista há algum tempo pelo monitoramento. Ledo engano. A comemoração de Eloisa não tinha nada a ver com os felinos. A câmera havia feito a primeira imagem conhecida de um mutum-pinima fêmea na natureza. Melhor ainda, de um casal desta que é uma das aves mais ameaçadas do país.
A pronta identificação visual é possível porque os mutuns-pinima (Crax fasciolata pinima) apresentam o que os cientistas chamam de dimorfismo sexual, ou seja, machos e fêmeas possuem diferenças físicas. No caso do pinima, a fêmea tem listras brancas finas no corpo e no topete, e uma barriga em tons de creme. Já no macho, a barriga é branca em contraste com o corpo todo preto por cima, sem listras.
“É a primeira imagem de uma fêmea em vida livre, antes só em cativeiro ou o bicho empalhado”, destaca o ornitólogo Flávio Ubaid, pesquisador da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), que teve acesso ao vídeo, capturado no final do ano passado.
Ainda que “sem querer”, já que o objetivo das armadilhas fotográficas é monitorar as onças-pintadas, a presença do casal de mutum-pinima vale muito, não apenas para reserva, mas para os esforços de proteção da ave, que coleciona raríssimos registros.
O mutum-pinima chegou a desaparecer do radar da ciência por quase 40 anos. A ave voltou a ser documentada, já com apoio de armadilhas fotográficas, em 2013 e novamente no ano seguinte, na Terra Indígena Mãe Maria, no Pará – os primeiros registros desde 1978. Desde então, somaram-se apenas mais um punhado de avistamentos – todos de machos. Em 2017, uma expedição na Terra Indígena Alto Turiaçu chegou a documentar a presença de um casal, porém os pesquisadores conseguiram fotografar apenas o macho.
Ao todo, os registros da última década concentram-se em três terras indígenas, uma no Pará (TI Mãe Maria), e duas no Maranhão (TI Alto Turiaçu e no entorno da TI Rio Pindaré), além da própria Reserva Biológica (Rebio) do Gurupi, também do lado maranhense.
Descrita no final do século 19, a ocorrência do mutum-pinima é restrita ao Centro de Endemismo Belém, entre Pará e Maranhão. Esta região de floresta que o pinima chama de lar é também uma das porções mais impactadas da Amazônia brasileira e a ave já perdeu mais de 75% do seu habitat original. Além disso, a ave é uma vítima frequente da caça, em especial as fêmeas, cujo penacho rajado é usado em rituais indígenas da etnia Ka’apor, que vive na região.
Essa equação levou o animal à classificação de Criticamente Em Perigo de extinção no país. De acordo com a última avaliação nacional do mutum-pinima, feita em 2017 pelo ICMBio, estima-se que a população na natureza seja certamente de menos de 50 indivíduos maduros.
“E essa é uma estimativa conservadora”, admite Flávio, que alerta que a realidade, dada a dificuldade de encontrar os indivíduos e o tamanho dos fragmentos remanescentes, deve ser ainda mais preocupante. “É de longe a ave mais ameaçada da Amazônia e só ocorre nessa área do Centro de Endemismo Belém, que também corresponde a área mais degradada da Amazônia”, completa o ornitólogo da UEMA.
Por tudo isso, a presença do casal da espécie dentro da Reserva Biológica do Gurupi é um sinal de esperança. “Esse registro é muito importante porque está dentro de uma unidade de conservação com fiscalização e acesso controlado, apesar de todos os conflitos, principalmente nas áreas limítrofes. Isso atesta o papel da Rebio”, pontua Flávio.
“[O monitoramento é] fundamental para avaliar a efetividade da unidade de conservação em relação aos seus objetivos de criação e divulgar a sua importância para a conservação da biodiversidade”, acrescenta a analista ambiental, Eloisa Mendonça.
Muitas perguntas e uma certeza: é preciso agir
A escassez de registros de mutum-pinima tanto na vida livre quanto armazenados em museus é um desafio para os pesquisadores que se propõe a entender melhor a ave, sobre a qual restam muitas incertezas. Uma das perguntas a serem respondidas é a própria classificação do mutum, considerado por algumas instituições como subespécie do mutum-de-penacho (Crax fasciolata), enquanto outras já o consideram uma espécie plena (Crax pinima), como a própria União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN).
“Um dos limitantes para esse estudo genético é o baixo número de amostras. Não chegam a duas dezenas os animais em museus e são exemplares antigos, o que compromete a coleta de materiais para análise. E desses registros feitos recentemente, só conseguimos uma amostra, mas tem uma equipe da USP e da UFSCar trabalhando nisso”, explica Flávio.
Outras perguntas, como quais as necessidades do mutum-pinima para sobreviver, desde o tamanho e qualidade da área, os alimentos e a reprodução, engrossam a fila de questões que os cientistas buscam solucionar para embasar ações concretas para mudar o destino da ave.
Um dos principais esforços é o Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação das Aves da Amazônia, coordenado pelo ICMBio através do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (CEMAVE) em parceria com diversas instituições de pesquisa.
O PAN, em seu 2º ciclo (2023-2028), engloba 57 táxons (espécies e subespécies), dentre elas o mutum-pinima.
Entre as ações listadas pelo plano para salvar a ave está a criação de um programa de cativeiro, explica a analista ambiental do CEMAVE, Camila Garcia Gomes, coordenadora do PAN.
“Essa discussão veio do PAN das Aves da Amazônia, com a participação de muitos pesquisadores, e nós colocamos essa ação para construção de um programa de manejo integrado para o mutum-pinima”, conta a analista.
O programa, em fase inicial de elaboração, segue a orientação da Instrução Normativa nº 5 do ICMBio, em 2021. Essa ferramenta é voltada para as espécies ameaçadas de extinção que dependem de ações coordenadas de manejo populacional in situ (na natureza) e ex situ (em cativeiro), caso contrário podem ser extintas no período de três gerações ou menos, ou sofrer uma redução drástica da população na natureza neste mesmo período – como é o caso do mutum-pinima.
Atualmente, não é conhecida nenhuma população ou mesmo indivíduo de mutum-pinima mantidos sob cuidados humanos. Ainda que seja consenso a necessidade de intervir e retirar um casal da natureza para reprodução em cativeiro, a equação não é tão simples, ainda mais diante de uma ave criticamente ameaçada, com números tão baixos e poucas populações conhecidas. “Temos que ter muito cuidado”, pontua Flávio.
O PAN das Aves da Amazônia lista ainda, entre as ações voltadas para o mutum-pinima, a definição de áreas para restauração ecológica e a identificação de remanescentes importantes para conservação no Centro de Endemismo Belém; além do desenvolvimento e implementação de um programa contínuo de educação ambiental.
Fonte: ((o))eco