Distribuído sobretudo no Brasil e com parcelas menores na Bolívia e Paraguai, o Pantanal ainda é um dos centros globais de biodiversidade, de variedade de seres vivos. Só de aves, mais de 600 espécies foram listadas na planície alagável e nas morrarias.
Na prática, o bioma abriga as maiores populações de aves aquáticas do país, além de servir de parada para uma grande gama de espécies migratórias, que por lá cruzam em suas travessias de oceanos, continentes e cordilheiras.
Tamanha riqueza alcança porções como o “Maciço do Urucum”, no Mato Grosso do Sul, onde diminutos alados como o campainha-azul (Porphyrospiza caerulescens) dividem espaços naturais com araras, falcões e a imponente harpia (Harpia harpyja).
Estudos reforçam a importância ecológica do território. Ele é uma área prioritária para conservação pelo alto número de animais endêmicos e ameaçados. A riqueza de plantas não é menor. Ali se encontra, por exemplo, a maior diversidade estadual de orquídeas epífitas – que crescem sobre outras plantas.
“É uma diversidade absurda”, diz Alessandro Pacheco Nunes, que estuda emplumados há mais de duas décadas no Pantanal. “Algumas espécies só ocorrem aqui e muitas já estão ameaçadas”, alerta o bolsista do CNPq para pesquisas junto à Fiocruz e à Embrapa Pantanal.
Baixa tolerância natural
Uma das espécies vulneráveis é justamente a harpia, a mais poderosa águia das Américas, atingindo 2,2 m de envergadura e até 7 kg de peso. A espécie foi registrada pela primeira vez no maciço em 2009. Desde então, outros casais e ninhos ativos surgem no Urucum, buscando matas preservadas, presas e paz.
“Ela não tolera perturbações. Ruído, movimentação e poeira podem levar ao abandono de ninhos ou à morte de filhotes”, alerta Tânia Sanaiotti, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e maior referência em pesquisa e proteção da espécie, à qual já dedicou três décadas de trabalho.
São justamente esses impactos que a ampliação da mineração em Corumbá pode levar às moradas de inúmeros animais e plantas.
A pressão econômica cresce porque o território guarda uma das maiores reservas brasileiras de ferro e de manganês, explorados para consumo no próprio Brasil – como na siderurgia – e para exportação, sobretudo à China e à Argentina, apontam órgãos federais.
Conforme Sanaiotti, isso é um risco ainda maior para espécies com características como as da harpia. A ave leva até sete anos para começar a procriar e só gera um filhote a cada três anos. “Uma vez perdida a floresta, não há compensação possível”, alerta.
Pesquisadores detalham que a mineração já opera a menos de cinco quilômetros de um ninho ativo, abrigado nos limites da que seria única área protegida pública regional: o Parque Natural Municipal de Piraputangas, com limites similares aos de 1.800 campos de futebol.
A expansão da lavra chegaria ainda mais perto da área ocupada pela espécie. “A lavra pressionará diretamente suas rotas de caça e de reprodução. Não há como negar os impactos”, reforça Sanaiotti.
Estudos e medidas criticados
Complicando o futuro das espécies nativas no Urucum, cientistas criticam os estudos ambientais para expandir a lavra de ferro. Eles avaliam que o plano é falho e arriscado por não assegurar a conectividade ecológica nem a conservação plena da fauna e flora locais.
“Foi um choque ver como o estudo simplifica a questão dos impactos ambientais. É um documento furado, perigoso para a biodiversidade”, analisa Nunes.
O relatório omitiria impactos sobre animais como a harpia e o gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus), áreas de reprodução e espécies migratórias ou ameaçadas, não evitaria a derrubada de árvores com ninhos e sugeriria compensações com reflorestamento vistas como insuficientes para predadores de topo.
“Essas aves nunca usarão áreas replantadas no maciço, décadas depois. O que se perde agora é irreversível”, explica Sanaiotti.
As consequências seriam maiores. O avanço da mineração poderia romper de vez corredores naturais e afetar igualmente macacos-prego e bugios, ambos presas das harpias e igualmente ameaçados de extinção.
“Eles não atravessavam áreas abertas de apenas 500 m. O desmate cria barreiras intransponíveis. Sem corredores e sem recuperação planejada, a fauna não resiste”, diz a bióloga Carolina Garcia, gestora da Consultoria Sauá e líder de um programa de monitoramento regional de primatas.
Garcia aponta que o prejuízo é maior porque o Parque de Piraputangas, no sopé do maciço, não representa a biodiversidade do Urucum. “As compensações ambientais acabam em áreas sem ligação ecológica com a morraria. Aquele território único segue desprotegido”, critica.
Responsável por equalizar todos esses impactos, o licenciamento da expansão da lavra de ferro é do Governo Estadual, mas o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso Do Sul (Imasul) não atendeu nosso pedido de entrevista até o fechamento da reportagem.
À frente da lavra, a LHG Mining remeteu uma nota a ((o))eco por email afirmando desconhecer as alegações dos cientistas quanto ao estudo ambiental, que seria “amplo e detalhado, elaborado em conformidade com a legislação vigente”.
“O EIA/RIMA foi desenvolvido com a expertise de 39 profissionais, entre cientistas e especialistas de diferentes áreas, incluindo geógrafos, biólogos, geólogos, engenheiros e arquitetos”, detalhou a empresa, ligada ao grupo J&F, controlador de marcas como JBS, Banco Original, Âmbar Energia e Canal Rural.
Um folheto com as logos do Governo Estadual e da companhia afirma que o projeto prevê 2,5 mil empregos diretos e indiretos, aumento de R$ 350 milhões/ano na arrecadação de impostos, reusar até 80% da água, operar sem barragens de rejeitos, com tecnologias que reduzirão ruídos, poeira e emissões de gases de efeito estufa.
Diante desse cenário, a audiência para expansão da lavra no Urucum terá o desafio de conciliar ganhos econômicos com a proteção do Pantanal e de espécies como a harpia. Para tanto, serão decisivos estudos transparentes, metas de mitigação mensuráveis e um plano de recuperação ambiental efetivo.
Fonte: O Eco