A produção alimentícia de todo o mundo sofrerá à medida que o aquecimento global chegar a 1,5ºC, causando sérios efeitos no abastecimento de alimentos nas próximas duas décadas, alertaram cientistas, após o maior relatório científico já feito sobre a crise climática.
O aumento das temperaturas significará que haverá mais épocas do ano em que as temperaturas excederão o que as safras podem suportar, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em seu sexto relatório de avaliação publicado na segunda-feira.
Políticos de todo o mundo continuaram respondendo ao relatório. Boris Johnson, primeiro-ministro britânico, publicou um vídeo em seu canal de mídia social, definindo as quatro áreas que ele queria se concentrar na corrida até a cúpula das mudanças climáticas no outono: eliminar o carvão para geração de energia até 2040, assim como os combustíveis fósseis para transporte; fazer com que os países juntem dinheiro para ajudar as nações mais pobres com as mudanças climáticas; e acabar com o “massacre das florestas”.
O presidente dos EUA, Joe Biden, estava sob pressão para que sua legislação de mudança climática fosse aprovada depois de dizer “Mal podemos esperar para enfrentar a crise climática. Os sinais são inconfundíveis. A ciência é inegável. E o custo da inação continua acumulando”.
Na Austrália, o primeiro ministro Scott Morrison apontou o dedo para a China, dizendo em uma coletiva de imprensa na terça-feira que não poderia ser ignorado que o mundo em desenvolvimento é responsável por “dois terços das emissões globais” e acrescentando que as emissões da China “representaram mais do que toda a OCDE combinada”.
O governo chinês emitiu um comunicado à Agence France-Presse dizendo que “a China tem insistido em priorizar o desenvolvimento sustentável, verde e de baixo carbono”. Acrescentou que o presidente Xi Jinping pretendia “controlar estritamente” o crescimento de usinas a carvão.
Os desafios para os nossos sistemas de produção de alimentos serão apenas um dos impactos, concluiu o relatório: a mudança dos padrões de chuva deixará muitas áreas vulneráveis à seca, enquanto as condições meteorológicas extremas tornarão a agricultura mais difícil e danificarão as colheitas.
Bonnie Waring, conferencista sênior do Grantham Institute, Imperial College London, disse: “Em todo o mundo, mais de 80% das calorias consumidas vêm de apenas 10 plantas agrícolas, incluindo arroz, milho e trigo. Embora algumas culturas básicas – como a soja – possam ter um desempenho melhor em um futuro mais quente, o aumento das temperaturas e as secas cada vez mais frequentes provavelmente reduzirão o rendimento dessas principais culturas em muitas regiões do globo”.
O espectro total dos danos não será totalmente revelado até o próximo ano, quando o IPCC publicará a segunda parte de sua avaliação histórica, que cobrirá os impactos da degradação do clima em áreas chave da vida humana e do planeta.
A primeira parte do relatório, publicado nesta semana, trata das bases da ciência física para as mudanças climáticas – isto é, o que acontecerá com a atmosfera, os mares e a terra – e com isso muitos dos prováveis danos à agricultura já podem ser avaliados.
Ilan Kelman, professor de desastres e saúde da University College London (UCL), disse: “Se não agirmos, um número significativo de pessoas poderá enfrentar problemas graves com alimentos. O aumento do calor e da umidade prejudicará as colheitas e os animais, tendo secas e inundações com o potencial de destruir colheitas. Mudanças maciças nas práticas agrícolas, incluindo mudanças nas safras e na pecuária, seriam necessárias para combater esses efeitos”.
David Reay, professor de gestão de carbono da Universidade de Edimburgo, acrescentou: “Para alimentos básicos como o arroz – a principal fonte de nutrição para mais de um bilhão de pessoas – o aquecimento não está apenas mudando os padrões de chuva, está também ameaçando o degelo glacial que irriga milhões de hectares de terras agrícolas do sul da Ásia”.
O clima extremo neste ano também revelou outro grande impacto: quando as temperaturas do “bulbo úmido” aumentam, as pessoas não podem trabalhar com segurança nos campos. Essas condições ocorrem quando o calor e a umidade são altos, de modo que os corpos das pessoas não conseguem dissipar o suor com eficiência.
Algumas pessoas especulam que o aquecimento das temperaturas pode ser bom para a agricultura, pois permitiria períodos de cultivo mais longos nas latitudes do norte, além do efeito fertilizante causado pelo aumento do dióxido de carbono na atmosfera, absorvido do ar pelas plantas à medida que crescem. Mark Maslin, professor de ciência do sistema terrestre na UCL, rejeitou essas afirmações. “Quaisquer benefícios serão pequenos e serão superados pelos danos e pelo risco de condições meteorológicas extremas”, disse ele, alertando que o aumento dos preços dos alimentos também será um grande perigo.
A pecuária também será afetada, embora a redução de nossa dependência de carne e laticínios provavelmente seja uma das principais formas de desacelerar o aquecimento global: o metano, grande parte dele proveniente de fontes agrícolas, incluindo ruminantes e esterco, é uma das principais causas de desagregação climática identificada no relatório de avaliação do IPCC.
Rob Percival, chefe de alimentação e política de saúde da Soil Association do Reino Unido, disse que as pessoas não precisam desistir de comer ou produzir carne, mas que os padrões de consumo de alimentos precisam mudar junto com a produção de alimentos. “Uma rápida transição para a agricultura agroecológica oferece uma abordagem mais saudável e sustentável para a produção de nossos alimentos, e requer uma mudança em nossas dietas para menos e melhores carnes, com ênfase em frutas e vegetais frescos, e no consumo de mais leguminosas”, ele disse.
Shefali Sharma, diretora do Instituto de Política Agrícola e Comercial, disse ao Guardian que todas as áreas seriam afetadas, não apenas as regiões mais pobres do mundo onde muitos agricultores já são vulneráveis, e reforçou que todos os governos devem agir com urgência. “Os governos devem começar agora a tomar medidas urgentes para construir resiliência nos sistemas agroalimentares. Isso significa desenvolver a saúde do solo, a biodiversidade agrícola de plantações e animais, um trabalho sério de extensão que se baseie no conhecimento tradicional, nas raças e sementes locais, e no suporte adequado para adaptação”.