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ESPÉCIE AMEAÇADA

Atraso em acordo segue matando araras em redes elétricas na Bahia

Ministério Público estadual e Neoenergia-Coelba ainda não pactuaram o tamanho da área alvo das ações protetoras da ameaçada ave

16 de outubro de 2025
Aldem Bourscheit
6 min. de leitura
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Uma arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) morta em rede elétrica no sertão baiano, único local na natureza onde vive a espécie em risco de extinção. Foto: Aldo Nunes

Um acordo em aberto entre o MP da Bahia e a Neoenergia-Coelba prolonga as perdas de araras-azuis-de-lear na Caatinga baiana, sua única morada na natureza. Pesquisadores apontam alternativas para reduzir os choques mortais, que podem retardar a recuperação das populações da ameaçada espécie.

As descargas ocorrem quando a ave toca fios e outros equipamentos com suas grandes asas. Por isso, o aperto de mãos entre as entidades mudará mais postes e fiação para reduzir a matança no Raso da Catarina, região árida e semiárida entre municípios como Jeremoabo, Paulo Afonso e Euclides da Cunha.

Denúncias de cientistas e ongs sobre os choques vêm desde 2020. O acerto entre MP e concessionária que era esperado para o fim do ano passado pode ser selado ainda em 2025. A principal pedra no caminho é o tamanho da área alvo das medidas conservacionistas, diz a promotora Luciana Khoury.

Como estão em tratativas, os números não foram detalhados, mas ela resume a situação. “Nós propusemos uma área maior e a empresa entendeu que a área era grande demais”.

Diante do impasse, a presidente da Associação Jardins da Arara de Lear, Marlene Reis, afirma que uma solução definitiva é trocar equipamentos na região toda onde vive a espécie. “Precisamos de uma lei que obrigue padrões para as redes elétricas que protejam a biodiversidade”, avalia.

Além disso, por serem de menor porte e interioranas, tais estruturas não têm licenciamento ambiental. “Isso aumenta as chances de prejuízos ecológicos”, avalia Paulo Zuquim Antas, doutor em Ecologia pela UnB. “Está é uma discussão que precisa ser feita”, acrescenta Khoury.

Rumo ao acordo formal

Delimitadas com apoio de ongs e pesquisadores e acompanhadas pelo MP, as áreas que seriam as mais suscetíveis a choques em araras já passam por mudanças em postes e fiação. “Foram alteradas várias redes para prevenir mortes, mas não de toda a região”, pontua Khoury.

Um reforço ao desenho da área alvo das ações protetoras virá com o monitoramento por satélite da movimentação das araras, a partir deste mês. “Sabendo mais precisamente por onde as araras andam, será mais viável protegê-las”, afirmou Antas.

A Neoenergia Coelba diz ter investido R$ 40 milhões em três anos e adaptado mais de 5 mil estruturas desde 2020 para “pouso seguro” das aves, com maior distância da fiação e reposicionamento de isoladores. Também afirma manter ações como educação ambiental e produção de mudas nativas.

A empresa analisa que a rede na região foi “implantada há décadas” e que os choques passaram a ser contados nos últimos anos pelo desmate que reduz as áreas de licuri, principal alimento da ave – “evidenciando que os impactos à espécie estão associados a fatores ambientais mais amplos e não fomentados pela distribuidora”.

De acordo com o MapBiomas, resta pouco mais da metade da vegetação nativa da Caatinga. Quase todo o eliminado deu espaço para agricultura e pecuária. O balanço alerta também sobre o aumento de incêndios no bioma, o único totalmente dentro do país.

Para reduzir os conflitos com produtores rurais – sobretudo de milho e feijão – diante da escassez do licuri, mudas dessa palmeira nativa são disseminadas na região por projetos como os Jardins da Arara de Lear, com apoio de moradores locais e fomento ao artesanato e turismo.

“O coquinho é recurso-chave para outras espécies como a jacucaca, abelhas e pessoas, e também serve às indústrias cosmética e farmacêutica”, diz Reis.

As contendas com agricultores também seriam freadas pela compensação das perdas provocadas por aves famintas. “Essas compensações devem ser ‘em produto’, milho ou feijão, não em dinheiro, para evitar dependência ou fraudes”, defende Antas.

Acelerar para conter danos

Ampliar ações protetoras é crucial para a sobrevivência da espécie. Uma pequena população ocupa a região do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, mas a maior parte das cerca de 2,5 mil de-lear na natureza se divide em grupos de diferentes tamanhos no território de planaltos e cânions do Raso da Catarina.

A espécie se recupera após números alarmantes nos anos 1980, quando havia cerca de 60 animais vivendo livres. “Não é um quadro maravilhoso, mas é melhor que antes”, analisa Antas. “Mesmo assim, grupos pequenos podem colapsar com a mortalidade na rede elétrica”, avisa.

Estudos apontam cerca de cem araras mortas por choques ao ano. Em 2025, ao menos 35 morreram nas redes elétricas. Mas o total pode ser maior, pois cientistas estimam que carcaças na Caatinga sejam predadas em até três dias, reduzindo a contagem. “Cada arara perdida impacta o bando todo”, alerta Reis.

Por isso, há 7 anos campanhas de comunicação em rádios e redes sociais estimulam moradores a reportarem o máximo de aves mortas por eletrocussão. “Mas em municípios com menor presença da iniciativa, as perdas podem não ser registradas”, reconhece a advogada.

As coordenadas de cada perda confirmada são repassadas ao MP estadual e as aves mortas são congeladas. “Temos freezers lotados”, relata.

Outra medida foi apontada em estudo publicado no Journal of Applied Ecology. Conforme a modelagem, alterar 10% dos postes nas áreas de maior risco de choques encolheria os acidentes em até 80%. A taxa aumentaria para 90% com mudanças em 20% das redes.

Segundo o artigo, a infraestrutura elétrica no Raso da Catarina aumentou por volta de 30% entre 2018 e 2023, inclusive em áreas de uso da arara-de-lear e de ocorrência de licuri, onde a ave usa fios e postes como poleiros.

“Nossas estimativas apontam um bom custo-benefício tanto para a empresa quanto para a conservação da espécie”, afirmou à Agência Fapesp a brasileira radicada no Reino Unido Larissa Biasotto, senior science officer na ong BirdLife International e primeira autora do estudo.

A arara-de-lear é listada como ameaçada de extinção por entidades brasileiras e internacionais. Por isso, os autores argumentam que reduzir as fatalidades em 60% pode não ser suficiente para garantir que sua população seja viável em longo prazo.

Além de choques e desmatamento, o animal enfrenta outros riscos. “Parques eólicos se instalam bem nas rotas de voo dessa e de outras espécies”, critica Reis. “Ninhos são fáceis de achar e o tráfico segue como uma pressão permanente”, lembra Antas.

Essa soma de ameaças pede ações urgentes e efetivas dos poderes público e privado e de outros setores para livrar do desaparecimento uma espécie emblemática e única do Brasil. A hora de arregaçar as mangas é agora.

Diante da soma de ameaças, o Raso da Catarina pede respostas rápidas e concretas. Poder público, setor privado, ongs civil e academia devem agir juntos para adaptar as redes e recuperar a vegetação nativa para conter choques e mais perdas de araras-de-lear.

Fonte: O Eco

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