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'Ascensão' ou declínio?

20 de abril de 2010
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De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o vocábulo “ascensão” é substantivo feminino que tem por significado o ato ou efeito de ascender ou a qualidade ou estado do que está em ascendência, movendo-se para cima, elevando-se. Possui, portanto, como sinônimos, elevação ou subida.

José de Oliveira Ascensão, nascido em Luanda, a 13 de novembro de 1932, é renomado advogado e Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa. Integram seu currículo os títulos de membro da Comissão de Especialistas de Direito de Autor da Comunidade Europeia, de Presidente da Associação Portuguesa de Direito Intelectual, de membro da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida, entre tantos outros. Representou Portugal em diversas missões internacionais e é autor de mais de duzentos e cinquenta títulos, entre os quais se incluem obras nos domínios de Introdução e Teoria Geral do Direito, Teoria Geral do Direito Civil, Direitos Reais, Direito das Sucessões, Direito Empresarial, Direito de Autor e Conexos, Direito da Informática e Concorrência Desleal.

Como se percebe, os títulos, as obras e a carreira acadêmica do Professor Ascensão denotam o brilhantismo de sua vida profissional e o vigor de sua contribuição doutrinária para o Direito.

Recentemente, motivado por essas importantes credenciais, e pela necessidade da releitura de um livro de Introdução à Ciência do Direito, adquiri um exemplar da obra Introdução à Ciência do Direito, de autoria do referido autor, publicado pela Editora Renovar, que aborda os temas relativos à disciplina de mesmo nome.
A esse respeito é importante frisar que a Introdução à Ciência do Direito é disciplina de importância central na grade curricular do ensino jurídico, pois justamente “introduz” o aluno ao mundo do Direito, demarcando as noções e conceitos jurídicos fundamentais. Tem também por objetivo fornecer uma visão sistêmica do fenômeno jurídico, propiciando uma compreensão ampla e correlacional com os principais ramos do Direito. Diz-se, portanto, propedêutica, por ser preparatória e trazer as noções básicas e gerais que servirão de suporte para a inserção intelectual do futuro bacharel no curso superior. De fato, a matéria não contém um objeto único e o seu enfoque se espraia tanto pela filosofia (solucionar o problema do conhecimento jurídico/epistemologia) quanto pela dogmática propriamente dita.
No Brasil, a disciplina tornou-se obrigatória com o Decreto n. 19.852/31, ratificado mais tarde pela Resolução n. 3/72 do Conselho Federal de Educação. Atualmente, de acordo com a Portaria n. 1.886/94 do Ministério da Educação, a disciplina recebe o nome de “Introdução ao Estudo do Direito”.

Constata-se que existe certa defasagem, em termos bibliográficos, a respeito da disciplina. A obra do professor Ascensão é uma das que se coloca em plano de destaque em relação às demais, justamente por pretender trazer uma visão mais atualizada do fenômeno jurídico, consentânea com a inarredável dinamicidade da vida social. Todavia, apesar de todas essas credenciais, qual não foi a minha surpresa ao ler a primeira página do primeiro capítulo da obra supramencionada. Nela, estampa-se a velha e anacrônica visão da instrumentalidade da vida. O referido autor, ao dirigir as primeiras palavras ao estudante de Direito, na “primeira” cadeira da Faculdade de Direito, afirma que: “o Direito não é um fenômeno da Natureza, mas sim um fenômeno humano, implicando necessariamente o fator espiritual. Coisas e animais podem ser contemplados pelo Direito, como objetos, mas não se relacionam em termos de Direito, nem o Direito estabelece para eles regras de conduta. Há, sim, regras sobre condutas humanas referentes a coisas ou animais, o que é muito diverso. É verdade que se tornou hoje moda falar nos direitos dos animais, mas temos de entender como uma maneira divertida de chamar a atenção para as condutas dos homens em relação aos animais; pois, se se pretender que constitua uma categoria jurídica, é pura insensatez” (op.cit., p. 13-14).

Mais triste que a falta de atualização com relação ao tema é o tom nitidamente depreciativo encontrado na equivocada afirmação do professor Ascensão. Ao assim proceder, incorre no erro de postular o dogma pelo viés do dogmatismo e não da dogmática. Aduz colocações sem explicar o porquê e sem rebater coerentemente a posição contrária. O mais grave é que faz isso com o estudante que inicia os estudos de Direito, incutindo nele um universo de preconceitos absolutamente infundados.
O mesmo desdém pode ser percebido em outros autores igualmente abalizados quando pretendem negar a possibilidade de extensão de direitos subjetivos aos animais. LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, ao comentar o art. 2º do Código Civil Português, afirma enfática e reacionariamente que a sociedade humana é o pressuposto de todo o direito, daí se seguindo que: “só o homem é suscetível de direitos e obrigações, qualidade esta que não pode ser conferida aos irracionais. Era mesmo inútil atribuir a estes quaisquer direitos e obrigações, pela simples razão de que eles não poderiam jamais exercê-los. É certo que em todos os países civilizados, há leis proibindo os maus tratos de animais […]. Mas, estas leis, como já ficou dito, são feitas para os homens, mesmo quando aproveitem diretamente aos animais […]. Não é lícito, pois, dizer que os animais têm semidireitos ou são semipessoas, como alguns escritores, por pura pieguice, afirmam” (In Tratado de Direito Civil. São Paulo: Max Limonad, 1955. p. 188).

O aclamado J.M. LEONI LOPES DE OLIVEIRA parece partilhar da mesma opinião depreciativa de GONÇALVES e ASCENSÃO ao afirmar que: “[…] há alguns autores que, de maneira um tanto quanto esotérica, defendem a personalidade dos animais” (In Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, volume 2. p. 9-10).

Esquecem-se, no entanto, de explicar por que falar em direito dos animais seria um modismo, uma pieguice ou, ainda, esoterismo. É como se esses qualificativos, por si, fossem suficientes para destruir a posição contrária. Há uma falha argumentativa básica consistente na absoluta ausência de razões, coerentemente fundadas, para contrapor as teses animalistas. Os adjetivos empregados são não só descorteses, mas, pior que isso, destacados da compreensão do pensamento filosófico clássico e contemporâneo. A questão animal sempre foi alvo da investigação dos mais diversos pensadores, desde a antiguidade clássica à pós-modernidade. De um modo ou de outro, a indagação sobre o estatuto moral e jurídico dos animais é matéria da mais alta indagação, sobre a qual juristas de escol e intelectuais de vanguarda já se debruçaram. Entre tantos outros estão DEMOGUE, CESARE GORETTI, JOHN RAWLS, RONALD DWORKIN, ROBERT NOZICK, SUNSTEIN CASS, MARTHA C. NUSSBAUM, LAURENCE TRIBE, RICHARD POSNER, ALASDAIR MACINTYRE, ALAN DERSHOWITZ, SANTIAGO NINO, PECES-BARBA, RICHARD EPSTEIN, TOM REGAN, STEVEN WISE, GARY FRANCIONE, WILL KYMLICKA, CANOTILHO, FERNANDO ARAÚJO, BERTRAND RUSSEL, J.M. COETZEE, EDGAR MORIN, HENRY SPIRA, KEITH THOMAS e RICHARD RYDER.
 
No Brasil temos sido agraciados com excelentes trabalhos de inúmeros pensadores, filósofos, juristas, cientistas sociais, ativistas entre tantos outros.
O respeito ético e jurídico pelos interesses dos animais tem adquirido foros de irreversibilidade em muitos meios, sendo praticamente impensável que um filósofo moral deixe de abordar questões relacionadas à ética animal nos dias de hoje. Assim sendo, parece-me lamentável e de todo equivocada a posição do professor Ascensão. A prevalecer o seu entendimento é certo que estaríamos muito mais próximos de um declínio do que de uma elevação dos estudos jurídicos com relação à questão animal. Os dogmas jurídicos, vistos não pelo viés da dogmática, mas pelo dogmatismo, devem ser combatidos pelos operadores do direito. Há que se dedicar um maior carinho e um maior cuidado com as disciplinas introdutórias nas cadeiras universitárias. A reprodução sistemática, acrítica e automatizada da doutrina é um dos piores males a que o estudante está exposto.

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