As filas são longas no guichê de apostas do hipódromo, sobretudo aos domingos. Muito mais lotada é a arquibancada, alvoroçada de pessoas querendo ver os cavalos com mais chances de vencer a corrida. Aqueles que têm binóculos conseguem avistar onde estão os animais promissores, mas também enxergam os azarões. As melhores análises não dão garantias de quem vencerá, mas há certeza de que haverá emoção. Toda a tensão é liberada na largada e os menores detalhes podem determinar quem será o campeão, o que se definirá apenas quando ele cruzar a linha de chegada.
O cenário do turfe descrito é uma analogia com a conservação das espécies ameaçadas de extinção. A sobrevivência é a linha de chegada, e nem todos terminarão a corrida. Os favoritos são os classificados como menos graves, chamados de Vulneráveis (VU). Os intermediários são nomeados como Em Perigo (EN), enquanto os pangarés são os Criticamente em Perigo (CR). Análises de Viabilidade Populacional, Planos de Ação Nacional e Programas de Manejo Populacional são conjecturas nas filas de apostas. Binóculos e cronômetros são a ciência, mostrando quem tinha razão.
Em 2003, um “pangaré” entrou pela primeira vez nessa corrida da sobrevivência. Um periquito conhecido como cara-suja não era nem considerado espécie. Figurou apenas embutido como subespécie de outra ave em listas de fauna ameaçada de extinção que vigoraram antes daquele ano. Isso ocorreu primeiro na lista oficial brasileira, onde o cara-suja aparecia com o nome científico Pyrrhura anaca. A repetição desse nome ao longo do texto pode ser abreviada mantendo apenas a letra inicial do gênero, resultando em P. anaca. Ser lembrado como panaca não ajudava o pangaré.
Em 2007, as listas vermelhas internacionais incluíram essa ave como Pyrrhura griseipectus, mas sob classificação igual à da lista brasileira, pois era Criticamente em Perigo (CR) de extinção. Estudos genéticos e matemáticos mostraram que, antes de 2010, devia restar apenas uma centena dessas aves na serra de Baturité, no Ceará. Ali era seu único reduto conhecido pela ciência. As florestas que habitava perdiam sua qualidade pela falta de árvores grossas, onde a ave reproduzia em cavidades. Nesses raros ninhos, eram pilhadas por traficantes. Receberia aposta de quem fosse tolo ou visionário.
A Aquasis é uma Organização da Sociedade Civil de 30 anos. Em 2005, apostou no cara-suja. Se era tola ou visionária, não dava para saber naquela época. O fato é que a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza foi a primeira a cobrir a aposta, logo seguida pela Loro Parque Fundación e ZGAP (Zoologischen Gesellschaft für Arten und Populationsschutz e.V.) além de outros apoiadores com o passar dos anos. Utilizando-se de uma estratégia de conservação baseada em ninhos artificiais pendurados nas árvores, os caras-sujas começaram a reproduzir nesses locais seguros. As pessoas que cuidavam desses ninhos foram determinantes para o que aconteceria.
Entre 2010 e 2024, o contingente na serra de Baturité passou de cem aves para 1.238 periquitos, conforme o quinto censo da espécie, realizado em novembro deste ano. Antes dos apostadores do contrário rasgarem os seus bilhetes, outros indícios da vitória do azarão já se anunciavam. O cara-suja passou de Criticamente em Perigo (CR) para a categoria de Em Perigo (EN), ou seja, teve seu grau de ameaça diminuído. Outro indicativo foi a descoberta de novos pontos de ocorrência, conforme anunciado em duas matérias no ((o))eco para localidades cearenses em Quixadá e Ibaretama.
Descobertas em Canindé, Itapajé (ambas no Ceará) e Conde (Bahia), também trouxeram alguma esperança, sendo que a maior novidade ainda estava por vir: a translocação de aves excedentes para outras localidades. A primeira operação deste tipo ocorreu na serra da Aratanha, para onde famílias selvagens de caras-sujas foram translocadas com caixa-ninho e tudo. A operação foi tão bem sucedida que, em apenas um ano, os periquitos já reproduziam. Esses filhotes nascidos na serra da Aratanha também já estão procriando. Repetir esse esforço sob cuidados humanos não é tão simples.
Aves resgatadas de traficantes foram encaminhadas para o Parque das Aves, em Foz do Iguaçu, no Paraná, onde depois de quatro anos conseguiram reproduzir e ter seus filhotes mandados de volta ao Ceará. O elevado custo humano e financeiro dessa operação é justificado pela devolução de uma variabilidade genética que pode já não existir em vida livre, o que deverá ser testado por estudos que se encontram em andamento. Depois da operação exitosa de translocação na serra da Aratanha, chegou a vez de repetir as apostas para o sucesso no planalto da Ibiapaba, entre o Ceará e o Piauí.
O planalto cearense da Ibiapaba já teve cara-suja. Registros de capturas existem desde o final do Século XIX, com a última ave coletada em 1910. Há indícios obtidos em entrevistas de que pode ter alcançado a década de 1980. O hábitat que abriga aves florestais um pouco mais exigentes se estende nesse planalto desde o Parque Estadual das Carnaúbas, passando pelo Parque Nacional de Ubajara até a Reserva Natural Serra das Almas, com tais pontos conectados por duzentos quilômetros em linha reta. Uma operação de translocação teve início na Serra das Almas e em Ubajara.
Caras-sujas selvagens foram translocados para um recinto de aclimatação na Serra das Almas, e sua abertura em 12 de dezembro de 2024 é histórica na proteção. Ela pode alterar novamente o grau de ameaça da espécie para melhor. A abertura do recinto do Parque Nacional de Ubajara e a implementação da nova frente de reintrodução na chapada do Araripe prometem devolver ao cara-suja um território há muito perdido. O “pangaré” segue surpreendendo, reafirmando não só seu lugar na corrida pela sobrevivência, mas aumentando a chance de aposta em outros azarões.
Apostar no cara-suja está virando uma barbada!* Assim como no turfe, a conservação exige ações ousadas, planejamento meticuloso e uma dose de esperança. O resto é com a sorte. O cara-suja, que um dia foi considerado um caso quase perdido, hoje inspira a corrida por um futuro mais promissor também para outras espécies ameaçadas. A linha de chegada, afinal, não é apenas a sobrevivência do azarão, mas o equilíbrio entre o homem e a natureza, onde a vitória mais emocionante é garantir que todos os competidores ainda tenham uma pista para correr.
*Entre os que apostam, estão: Associação Caatinga, Arvorar Beach Park, Grupo New, American Bird Conservancy e Rainforest Trust.