O cavalo Caramelo se tornou símbolo da resiliência e da sobrevivência em meio a tragédias climáticas ao protagonizar um dos resgates mais midiáticos das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul este ano. Sua imagem foi reproduzida em todos os grandes veículos do país, seu destino mobilizou todas as instâncias do poder público e atraiu a torcida de milhões de pessoas, com transmissão ao vivo. Salvo, ele foi acolhido e tratado e vai até ganhar uma estátua em sua homenagem. A grande repercussão desse caso, no entanto, está longe de representar o tratamento dado a todos os outros milhões de animais de produção que morreram com a subida das águas no estado.
Segundo imagens de satélites analisadas pelo Mapbiomas, quase dois terços (61%) dos municípios do Rio Grande do Sul foram atingidos, em maior ou menor grau, por deslizamentos de terra, enxurradas, inundações e alagamentos em abril e maio deste ano. A dimensão humana dessa tragédia é, sem dúvida, comovente: 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, milhares de famílias tiveram perdas incalculáveis e mais de 180 pessoas morreram em consequência das chuvas.
Mas os humanos não foram os únicos afetados por esse evento climático extremo. O Rio Grande do Sul é o segundo maior produtor de carne suína do país e terceiro produtor de carne de frango. A Organização Avícola do Rio Grande do Sul (AO/RS) estima que as enchentes resultaram na morte de 3,6 milhões de aves, incluindo de corte, poedeiras e matrizes. Já o número de mortes de suínos deve chegar a 12 mil, segundo Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs). Entre bovinos, a estimativa é de cerca de 15 mil óbitos, indica a Associação Rio-Grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-RS). Seres vivos sencientes que, pela forma como são criados, não têm chance de se salvarem e morrem com medo e em sofrimento. Esse cenário, no entanto, não ganhou destaque na imprensa, ficando restrito às editorias reservadas ao agronegócio e tratado como perdas financeiras.
Ao pesquisar sobre mortes de animais nas enchentes do Rio Grande de Sul, as primeiras páginas de resultados remetem ao caso do pet shop indiciado pela morte de mais de 170 aves, peixes e pequenos roedores deixados por funcionários dentro da loja. É preciso refinar melhor a busca para encontrar notícias sobre os de criação. “Prejuízo com aves e suínos chega a R$ 330 milhões”, noticiou o Globo Rural em 28 de junho. “Animais mortos na enchente são risco para a saúde pública”, publicou o Zero Hora em 14 de maio.
Dar a seres que sentem dor e vivenciam emoções um tratamento semelhante a mercadoria faz parte da lógica industrial a que os animais de criação são submetidos, por isso a falta de comoção por essas mortes não chega a surpreender. E essa não é uma história nova. Em setembro de 2023, a Emater havia estimado que as enchentes provocadas pelo ciclone que atingiu a região sul naquele mês provocaram a morte de cerca de 30 mil animais entre bovinos, suínos e aves.
Vale lembrar que a criação extensiva de animais de produção para alimentação humana é uma das principais causas das mudanças climáticas, que estão provocando o aumento de eventos climáticos extremos. A pecuária representa 12% das emissões de gases de efeito estufa, segundo relatório do Fundo para Alimentação e Agricultura da Organização das Nações Unidas (FAO) lançado em dezembro de 2023. Além das emissões diretamente ligadas aos rebanhos, a produção de proteína animal é também um dos principais vetores do desmatamento no Brasil, seja para produção de grãos para alimentação animal ou para a ampliação de áreas de pastagem.
Não faltam, portanto, evidências científicas de que esse cenário é insustentável. Resta questionar de que forma a humanidade responderá a isso. Até quando animais sencientes serão submetidos a um sistema industrial perverso que está rapidamente destruindo o planeta e comprometendo a capacidade de sobrevivência humana na Terra? E, à medida que os eventos climáticos se agravam e se tornam mais frequentes, que espaço eles terão nos planos de enfrentamento às mudanças climáticas que os governos terão que elaborar nos próximos anos? O cavalo Caramelo poderia se tornar um símbolo maior, mas por enquanto segue sendo apenas uma história com final feliz entre milhões de histórias invisíveis de sofrimento.
Fonte: LinkedIn