João Guimarães Rosa nasceu em 1908 na pequena cidade de Cordisburgo e logo foi para Belo Horizonte, onde se formou em Medicina. Para exercer sua profissão, retornou ao interior de Minas Gerais e pode, durante muitos anos, estreitar seus contatos com o povo do sertão, conhecendo de perto a vida simples, os dramas humanos e a natureza ainda pouco degradada da época, para extrair dessa vivência aquilo que seria a matéria-prima de sua literatura. A primeira tentativa de ingresso no mundo das letras deu-se em 1937, ao submeter, sem êxito, os contos de Sagarana a um concurso literário. Persistente, o médico escritor (e, posteriormente, o escritor diplomata) levou na bagagem o elogio sincero de Graciliano Ramos, até conseguir, enfim, a publicação desse primeiro livro. Nem é preciso dizer que o sucesso foi estrondoso. Segundo a crítica especializada, Guimarães Rosa inaugurava um novo estilo de contar histórias, fazendo com que a paisagem mineira ressurgisse no pitoresco na vida regional, em narrativas singulares em que bois, aves, plantas e rios ganhavam voz. Tornou-se assim, o autor de Grande Sertão: Veredas, um clássico da literatura nacional, elogiado pela sua inovadora concepção estilística da língua portuguesa, tanto que, no fim da vida, em 1967, recebeu as merecidas honras da Academia Brasileira de Letras.
Em meio à produção literária de Guimarães Rosa, aliás, há um conto que se pode considerar, no mínimo, desconcertante. O texto começa descrevendo a inocência de uma criança. Fala do encantamento infantil diante da beleza do mundo natural. E mostra, depois, como a realidade cruel o faz perder as ilusões. Chama-se “As margens da alegria” este conto, que abre o volume de Primeiras Estórias (1962). A maturidade do escritor, na referida obra ficcional, serve de testemunho vivo para mostrar como a marcha do progresso é capaz de destruir ou maltratar aquilo que a natureza tem de melhor. Sem pretender aqui tirar de ninguém a motivação para a leitura do texto, nem contar a surpresa revelada em seu final, ouso dizer que “As margens da alegria” traz em si uma mensagem simbólica, na qual os animais – da mesma forma que a ambiente em geral – sucumbem aos desmandos da espécie dominante. Apenas duas palavras, então, sobre essa pequena grande história protagonizada por um menino.
A narrativa de Rosa começa com uma viagem de avião, em que o deslumbrado garoto é levado a um lugarejo, no meio da mata, que dará origem a uma cidade. No sítio havia um peru. Ave solene, imperial, única e encantadora: Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Depois, no passeio de jipe, o menino – sem tirar da memória o peru rei do terreiro – viu pelo caminho cobra-verde, papagaio, veado-campeiro, seriemas, garças, árvores e flores sem fim. Na volta, porém, a frustração. Sua ave majestosa não estava mais lá. Conheceu a alma infantil, pela primeira vez, aquele doer que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Perdeu-se a alegria. E tudo começava a mudar. Sentia-se mais cansado. No horizonte agora via apenas a tristeza: homens no trabalho de terraplanagem, os caminhões de castalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Cortaram o mato. Mataram a vida.
Nessa sutil metáfora do mundo em que vivemos, na qual a civilização esmaga as utopias, Guimarães Rosa mostra – pela arte – que é possível resistir. Afinal, escrever sobre a insensatez humana não deixa de ser uma forma de agir. Escrever para fazer pensar. Para que a floresta permaneça sempre intocada. Para que o peru permaneça íntegro em sua singular grandeza. Para que o respeito a tudo o que vive possa nos devolver a alegria que o mundo quebra e emudece. Para que os vaga-lumes, e não apenas eles, possam sinalizar no resgate das nossas perdidas ilusões.