Meu nome, já não o sei.
Só de Judia me chamam.
Meu rosto já foi bonito, na primavera em Varsóvia.
Um dia, chegou o inverno,
Trazido pelos nazistas;
E nunca mais quis ir embora.Um dia já fui bonita,
Tive noivo, e tive sonhos.
Trazidos pelos nazistas
Veio o terror, veio a morte.
As flores se acabaram…
As criancinhas também.
Meu noivo foi fuzilado na madrugada do inverno.
Alegres jardins de outrora hoje já não existem.
Nunca mais verei as flores.
As criancinhas morreram de fome, pelas sarjetas,
Furadas de baionetas, nas diversões dos nazistas.
Morreram as flores também.(Trecho do poema “Canção da Judia
de Varsóvia”, de Jorge Amado)
Recentemente tive a oportunidade de ler a obra O Zoológico de Varsóvia, de Diane Ackerman (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008). O livro relata a invasão alemã à Polônia, por ocasião da II Guerra Mundial, e destaca, em meio às inúmeras atrocidades, a história real da família Zabinski, formada por Jan, diretor do zoológico da cidade, sua mulher Antonina e Ryszard, filho do casal.
O tema central do livro é a resistência polonesa à invasão nazista. Com a morte da maior parte dos animais que habitava o zoológico, o casal passou a esconder judeus que fugiam da perseguição totalitária nas jaulas vazias.
De forma bastante geral, seguindo a tradição medieval, os primeiros zoológicos propriamente ditos eram de propriedade privada e conferiam status ao seu proprietário. Qualquer um podia montar “um armário de curiosidades”, mas eram exigidas altas somas para reunir “o maior dos crocodilos, a tartaruga mais velha, o rinoceronte mais pesado e a águia mais rara” (op. cit., p. 19). Na Polônia a lógica era a mesma. No século XVII, o rei Jan II Sobieski mantivera animais “exóticos” na corte, bem como diversos membros da aristocracia.
Em 1927 foi criado o Zoológico de Varsóvia e, em 1931, quando o cargo de diretor ficara vago, Jan Zabinski assumiu a posição, com o apoio de sua esposa. Segundo a autora, de fato “Antonina ficava contente por seu zoológico oferecer um leque precioso de criaturas fabulosas, no qual as páginas dos livros ganhavam vida e as pessoas podiam conversar com animais ferozes. Poucas pessoas um dia veriam pinguins em estado selvagem, deslizando de barriga encosta abaixo, em direção ao mar, ou três porcos-espinhos nas Montanhas Rochosas canadenses, enroscados como gigantescas bolotas de pinheiro; ela achava que encontrá-los no zoo dava aos visitantes uma visão mais ampla da natureza, personalizando-a e lhe conferindo hábitos e nomes. Ali vivia o mundo selvagem, aquele belo monstro feroz, enjaulado e tratado com amizade” (op. cit., p. 19).
A visão clássica da dominação da natureza por meio da força fica claramente estampada nas palavras da autora, que a descreve num tom quase que romântico, diria quase que chegando a ser elogioso. Na verdade começam aí as inúmeras ilogicidades derivadas do aprisionamento e escravização de incontáveis seres vivos. A visão de um animal cativo, ao contrário do que supõe o relato, traz, em si, uma imagem absolutamente equivocada, fragmentada, artificial e irreal da natureza. O mundo selvagem é visto como um monstro bonito e feroz, a ser enjaulado, mas tratado, paradoxalmente, com suposta “amizade”.
Esse relacionamento ambivalente com a natureza e com os animais não humanos torna-se ainda mais evidente quando são relatadas as inúmeras tentativas de fugas dos animais. Para Ackerman, as preocupações básicas dos jardins zoológicos, tanto antigos quanto modernos, incluem manter os animais pretensamente “saudáveis”, mas contidos. Segundo a autora, “depois que a onça-pintada quase saltou por cima do fosso do atual Jardim Zoológico de Varsóvia, o Dr. Rembiszewski mandou instalar uma cerca elétrica, do tipo que os fazendeiros usam para dar choques nos cervos e afastá-los de sua lavoura, só que feita sob encomenda e muito mais alta” (op.cit., p. 28-9). Solução engenhosa essa do Dr. Rembiszewski não?
A invasão alemã foi terrível para os poloneses, mas não só para eles. Infelizmente a guerra não poupa ninguém. Vidas absolutamente inocentes são ceifadas violentamente no zoológico: “Nesse ataque da Luftware, meia tonelada de bombas destruiu a montanha dos ursos polares, destroçando paredes, fossos e barreiras e soltando os animais apavorados. Quando um pelotão de soldados poloneses deparou com os ursos em pânico, salpicados de sangue e circulando em volta de sua antiga moradia, fuzilou-os de imediato. Em seguida, temendo que leões, tigres e outros animais perigosos também pudessem escapar, os soldados resolveram matar os mais agressivos, inclusive o elefante macho […]” (op. cit., p. 47). O jardim zoológico foi literalmente devastado pelos bombardeiros alemães. “Estilhaços de vidro e metal mutilaram indiscriminadamente pele, plumas, cascos e escamas, enquanto zebras corriam, estriadas de sangue […]. As balas rasgavam as redes do aviário e os papagaios subiam em espirais, como deuses astecas, e despencavam no chão […]. Alguns animais, escondidos em suas jaulas e bacias, foram engolfados por ondas sucessivas de chamas. Duas girafas ficaram mortas no chão, com pernas retorcidas, chocantemente horizontais” (op. cit. p. 53).
Antonina chega a alertar para o fato de que “os animais do zoo estão numa situação muito pior do que a nossa porque são totalmente dependentes de nós” (op. cit., p. 47). Esquece, porém, que essa relação de dependência, é bom que se diga, foi sedimentada e construída de maneira forçada e artificial.
Paralelamente, é de todo interessante perceber que o nazismo esperava dominar nações, ideologias e também ecossistemas. Havia uma visão de que determinadas espécies deveriam ser valorizadas enquanto outras deveriam ser extintas (inclusive determinados seres humanos pertencentes a determinadas minorias étnicas). Nesse sentido, envidaram esforços para proteger algumas espécies ameaçadas e até mesmo tentar “ressuscitar” outras já extintas. Lutz Heck, diretor do Zoológico de Berlim, caçador de grandes animais, passou a vida viajando ao redor do planeta para colher espécimes para sua instituição, e quem sabe pôr na bagagem um par de cabeças de carneiro selvagem para a parede de sua residência: “Heck adorava colecionar troféus, como lembretes de um lado selvagem de seu eu que emergia na distante natureza inculta – animais vivos para exibir em seu zoo, animais mortos para empalhar, fotografias para compartilhar e emoldurar” (op. cit., p. 68).
A engenharia genética, tal qual a conhecemos, só iria despontar na década de 70, mas Heck já utilizava a eugenia para cruzar animais que detivessem certos traços específicos tidos como “desejáveis”. Ocorre que todos os animais escolhidos por ele vicejavam na Polônia. Quando houve a invasão ele para lá se dirigiu à busca de novos objetos para sua extensa coleção.
Curioso também perceber a preocupação simbólica com relação à escolha do animal a ser eleito como o “totem” do Terceiro Reich. Heck imaginava que o “auroque”, uma espécie de touro, já extinto, poderia ser o escolhido. Muitas culturas antigas cultuavam o touro como representativo de força, vigor e poder (Egito, Chipre, Sardenha, Creta, entre outras). De acordo com a mitologia grega, o próprio Zeus assumia com frequência a forma de um bovino para se aproximar das mortais que julgava atraentes. O sonho de Heck, portanto, era o de que, ao lado da suástica, o touro pudesse ser o símbolo do nazismo.
A bizarra eugenia de Heck também fora utilizada pelos nazistas com a absurda pretensão de aprimoramento “racial” do próprio ser humano. De acordo com Ackerman, “depois que Hitler subiu ao poder, os objetivos biológicos do movimento nazista geraram muitos projetos para estabelecer a pureza racial, o que justificou atos de esterilização, eutanásia e assassinato em massa. Um dos grandes cientistas do Terceiro Reich, Eugene Fischer, colega e amigo de Heck, fundo ou Instituto de Antropologia, Genética e Eugenia, que favoreceu Josef Mengele e outros médicos igualmente sádicos das SS que usavam prisioneiros dos campos de concentração como verdadeiras cobaias” (op. cit., p. 70).
Obcecado com o controle de pragas, o Terceiro Reich financiou diversos projetos de pesquisa e desenvolvimento de venenos e inseticidas. A partir daí surgem analogias dantescas. No gueto, os prédios apinhados de habitantes eram ambientes de disseminação de doenças. “Naturalmente, isso levou à imagem de judeus pestilentos, coberto de piolhos. ‘O antissemitismo é exatamente igual ao despiolhamento’, disse Himmler a seus oficiais da SS em 24 de abril de 1943. […] Já em janeiro de 1941, o governador alemão de Varsóvia, Ludwig Fischer, informou ter escolhido o lema “judeus – piolho – tifo” para imprimir em três mil cartazes grandes […]” (op. cit., p. 132-3).