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As dores desiguais diante da perda de vidas humanas

3 de fevereiro de 2010
4 min. de leitura
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Após terminar de fazer o noticiário da noite, os jornalistas comentavam sobre quantas pessoas já morreram nos últimos meses pela ação da natureza. Recordavam das chuvas que inundam e continuam inundando algumas cidades brasileiras, das neves que congelaram as cidades dos Estados Unidos e da Europa e dos deslizamentos e desabamentos na região de Angra dos Reis. E, agora, as mortes em grande escala provocadas pelo terremoto devastador no Haiti. Uma das apresentadoras do noticiário confessava que não conseguiu conter as lágrimas mesmo estando no ar, após ver as imagens da tragédia do Haiti. Já não bastavam a fome e a miséria, aquele tipo de vida que faz com que o povo ganhe menos de 2 reais por dia e se alimente de bolinhos de barro temperado com sal? – perguntava ela.   

Naquele estúdio estava o susto, a sensação de “ainda bem que eu não estava lá”, sentimento de pena das vítimas e a vontade de estar lá para ajudar. Se fosse possível ver todos os sentimentos que pairavam naquele lugar, a imagem seria a de uma grande algazarra. E foi esse clima que invadiu imediatamente as televisões, as rádios, os computadores e os celulares.  

Mesmo daqueles sentimentos difusos nasceram reações organizadas e convergentes. Seguiram-se ações solidárias em todos os cantos do mundo. Mas também existiram pessoas que não se sensibilizaram, porque não se sentiram tocadas pela dor das vítimas do Haiti, porque acharam que tudo aquilo era algo quase normal num país pobre como aquele, ou porque não se sentiram identificadas com haitianos que eram muito diferentes e distantes delas. Por mais que essa constatação seja chocante, esse tipo de sentimento existe com mais frequência do que imaginamos.

A insensibilidade de muitos diante da catástrofe do Haiti não deveria nos revoltar, porque ela faz parte do nosso cotidiano. Por que nos sensibilizamos mais com o drama de uns, do que com o de outros? Por que o drama de uma criança de classe média nos chama mais atenção do que o drama semelhante de uma criança que mora numa favela? Por que a mídia dá mais atenção a um e não ao outro? Por que a morte violenta do ser humano é mais chocante do que a morte cruel dos animais?  

O problema é que recebemos uma educação em que aprendemos a tratar pessoas diferentes, de forma diferente. No fundo, não acreditamos na ideia de que somos todos semelhantes. Agimos criando diferenças entre os seres humanos e, ainda mais, na relação entre os seres humanos e todos os outros seres vivos. Demonstramos isso todos os dias, diante de cada fato do cotidiano.

Acreditamos que temos mais direitos do que os outros à vida e à felicidade. Que as nossas dores são maiores do que as dores dos outros. Que as nossas necessidades e o nosso conforto são mais urgentes e prioritários do que os dos outros seres humanos, ou dos seres animais. Não está na nossa alma o impulso de dividir e compartilhar, nem as coisas, nem os sentimentos.

Resultado disso é o mundo em que vivemos. Individualista, de sentimentos rasos, violento, de competição sem sentido, de exploração dos mais fracos e de relações cruéis com as vidas da natureza.  

São belos os sentimentos que originam as ações de apoio às vítimas do terremoto do Haiti. Pois é urgente que se enviem alimentos, água potável, roupas, remédios, médicos, voluntários. Será preciso ajudar a organizar a cidade, cuidar dos feridos, sepultar os mortos e reconstruir a cidade destruída. Tudo isso é preciso.  

Mas, no final da história, mesmo com todas essas ações, porque acreditamos na desigualdade entre as vidas, os haitianos permanecerão desiguais. Porque o sentimento de ajuda não está fundado na crença inabalável de que todo o ser vivo tem, no mínimo, direito à vida com moradia, alimentação, saúde e liberdade.

Para que o mundo pare de ser o que é, precisamos dialogar com os nossos sentimentos que direcionam os impulsos, as ações e formulam os nossos horizontes. Não há diferença entre as vidas. Não há graduação em quem – ou quais seres – merece ter vida mais digna ou menos digna. Em quem deve sofrer mais e quem deve sofrer menos. Existe só a vida, a vida preciosa de todos os seres vivos que ninguém tem o direito de maltratar e de tirar.

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