As únicas ararinhas-azuis que viviam livres foram capturadas na manhã de domingo, em Curaçá, interior da Bahia, levando à segunda extinção da espécie na natureza após um programa pioneiro de reintrodução em 2022.
O recolhimento das 11 aves em vida livre faz parte de um plano de emergência de contenção de um vírus para o qual ainda não existe cura, detectado em abril num filhote nascido na natureza. As informações são do criadouro do programa de reintrodução em Curaçá.
A captura foi feita atraindo os animais para dentro de um aviário com comida dentro. As ararinhas-azuis, uma espécie endêmica do sertão baiano, estavam acostumadas a se alimentar em comedouros ao ar livre, mas estes foram esvaziados na tarde de sexta-feira como parte da estratégia de captura.
“Quando fecharam as portas do aviário, algumas ararinhas ficaram chocadas, assustadas, mas voltaram a comer porque estavam famintas”, disse a Ecoa o técnico de campo Tyson Chapman, um australiano de 23 anos que trabalha há três anos e meio no Criadouro Ararinha-azul, em Curaçá.
“Fui vê-las hoje [terça] à tarde no final do dia. Estão OK. Estão penduradas na grade, provavelmente se perguntando por que há uma grade enorme entre elas e o pôr do sol. Desde que foram soltas, elas faziam parte do pôr do sol de Curaçá.”
“Foi tudo muito estressante”, continuou Chapman. “Foram dias muito tristes. Até para levantar da cama estava difícil.”
O criadouro fica numa fazenda de 2,6 mil metros quadrados, isolada numa região de caatinga sem cobertura de rede de energia, água e celular. É composto por seis recintos (também chamados de aviários ou cativeiros) que hoje agrupam cerca de 100 ararinhas-azuis que esperam, um dia, serem soltas na natureza.
Antes da reintrodução em 2022, a ave que inspirou a animação “Rio” (2011) não era vista voando livre desde 2000.
Os 11 animais capturados no domingo passam agora por uma bateria de exames.
Diretor do criadouro, o biólogo Ugo Vercillo explicou que as aves vão passar por três coletas de amostras em intervalos de 30 dias para detectar um tipo de circovirose. A primeira coleta foi realizada na terça-feira.
“Se todos os resultados derem negativos, as aves vão poder voltar à natureza, de acordo com o que nos foi dito pelo ICMBio”, disse Vercillo, que é também fundador da Blue Sky Caatinga, uma empresa dedicada ao reflorestamento da região para venda de créditos de carbono.
O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão do Ministério do Meio Ambiente, foi procurado pela reportagem e confirmou via nota a captura, sem dar mais detalhes ou explicar o que será feito no caso de testagem positiva.
Em julho, o órgão exigiu do criadouro que as aves fossem recolhidas devido ao alto grau de contágio do vírus entre aves, mas a empresa recorreu à Justiça. O criadouro alegava falta de infraestrutura para manter as aves e que a responsabilidade pela captura de animais livres é do estado, além de sugerir uma abordagem não invasiva de testagem antes de recolher as aves. No entanto, em outubro, uma decisão judicial determinou a captura.
A captura
Das 11 ararinhas-azuis recolhidas, nove eram sobreviventes das 20 que foram reintroduzidas em 2022, e duas eram filhotes nascidos em vida selvagem.
A captura teve início no final de outubro e foi acompanhada pela Polícia Federal e mais de dez pessoas da equipe do ICMBio.
A estratégia era atrair as aves livres para dentro de um grande aviário, que foi esvaziado e desinfetado com uma técnica de fogo controlado chamada “vassoura de fogo”. As seis aves que ali habitavam foram transferidas para outro recinto fora da fazenda.
Os funcionários do criadouro foram obrigados a seguir as regras impostas pelos agentes do ICMBio, muitas das quais eles não concordavam.
De acordo com Chapman, os funcionários do órgão proibiram o abastecimento dos comedouros ao ar livre espalhados pela fazenda desde a tarde de sexta-feira, fazendo com que as ararinhas-azuis ficassem famintas — só havia comida dentro do aviário.
“Sem comida, as ararinhas ficam fracas, cansadas. Elas poderiam ter voado para longe em busca de comida. Isso é um perigo. Traria alta possibilidade de predação por outros animais, como aconteceu no passado”, disse Chapman.
“Eu tentava explicar isso para eles [ICMBio], para fazer a transição de comida mais devagar, mas eles nos trataram muito mal. Não tiveram respeito comigo e, principalmente, desrespeitaram as ararinhas.”
Por volta das 6h da manhã de domingo, todas as 11 ararinhas se encontravam ao mesmo tempo dentro do aviário para comer. As duas janelas de entrada foram, então, fechadas. “Parte de mim desabou”, disse Chapman.
Na terça-feira, durante a testagem das aves capturadas, o técnico de campo informou a dois peritos da Polícia Federal e do ICMBio que uma das aves estava com ovo. “Todo mundo passou o dedo e sentiu o ovo. Mas eles não deram a mínima”, disse Chapman, explicando que a ave já teve cinco filhotes na natureza (quatro sobreviveram).
“O ovo vai cair no chão porque não tem caixa ninho dentro do aviário. Ou a ararinha vai correr sério risco de vida se não soltar o ovo.”
O ICMBio foi questionado sobre o incidente e não respondeu.
Circovírus
O programa de reintrodução da ararinha-azul estava prestes a retornar com as solturas de aves em junho, após um ano conturbado de disputas entre o governo brasileiro e a ACTP (sigla em inglês para Associação de Conservação de Papagaios Ameaçados), grupo privado da Alemanha que mantém o maior número de ararinhas do mundo em cativeiro e é parceiro do criadouro brasileiro em Curaçá.
Porém, das 20 aves que seriam libertadas, 14 testaram positivo para a circovirose, após o vírus ser detectado no filhote selvagem. Nenhuma delas morreu.
O circovírus é conhecido como “doença do bico e das penas dos psitacídeos” (aves da família das araras, periquitos e papagaios) e causa perda de penas, anormalidades no bico e imunossupressão. Mesmo animais assintomáticos transmitem o vírus, que não traz risco à saúde humana e não afeta galinhas e outras aves de produção.
O criadouro anunciou que todas as aves que testaram positivo, com exceção de uma, deram negativo nos exames mais recentes, feitos em setembro, embora afirme que o ICMBio esteja contestando os resultados. A agência não respondeu à reportagem sobre testagem.
“O ICMBio entende que, uma vez positivo, a ave nunca mais poderá ser solta na natureza. Mas há casos de recuperação, sim”, disse Vercillo, biólogo e diretor do criadouro.
Ele citou um estudo sobre a doença publicado neste ano pelo Grupo de Especialistas em Papagaios Silvestres da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN na sigla em inglês) que afirma que “aves positivas ou com sintomas podem se recuperar e não precisam ser sacrificadas”.
O estudo também diz que uma ave com o sistema imunológico competente normalmente desenvolve uma forte resposta de anticorpos à infecção, o que permite eliminar o vírus do organismo. “Quando a doença se manifesta nesses casos, tende a ser leve e seguida de recuperação completa”, diz o estudo da organização com sede na Suíça.
O circovírus em psitacídeos surgiu primeiro em cacatuas selvagens da Austrália e foi detectado no Brasil no final dos anos 1990, numa cacatua em cativeiro. Há poucos estudos sobre o vírus no país, mas há diversos registros feitos em criadouros e centros de triagem, principalmente por via de comércio ilegal.
Cromwell Purchase, biólogo sul-africano que passou os últimos 15 anos dedicado à reprodução da ararinha-azul, disse a Ecoa que duvida que as aves capturadas voltarão à natureza.
“Gostaria de acreditar que sim, mas não vejo como o ICMBio irá nos permitir liberá-las novamente, caso não estejam irremediavelmente impactadas pelos meses de exames em cativeiro”, disse Purchase, funcionário da ACPT que mora na fazenda em Curaçá desde sua criação, em 2020.
Foto: Ecoa