O programa pioneiro de reintrodução da ararinha-azul, que trouxe a ave de volta aos céus da Bahia após sua extinção na natureza, foi suspenso na semana passada após confirmação de um surto viral para o qual não existe tratamento. 14 aves estão infectadas, incluindo um filhote de vida livre.
O que aconteceu
Instituto de conservação pediu recolhimento “urgente”. “O recolhimento das ararinhas-azuis é medida obrigatória e urgente, não podendo ser substituída por outra”, informou o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão do Ministério do Meio Ambiente, num ofício de 22/7 à empresa Blue Sky Serviços Administrativos, responsável pelo criadouro do programa em Curaçá, interior da Bahia.
O recolhimento resultaria em nova extinção da espécie na natureza. A Blue Sky afirmou à reportagem que não fará a captura porque não tem autorização e espaço para as condições exigidas pelo órgão. O ICMBio foi procurado sobre quais serão os próximos passos e não respondeu até o momento.
Apenas 11 ararinhas-azuis existem hoje em vida livre. 9 são sobreviventes das 20 que foram reintroduzidas em 2022, e há dois filhotes nascidos em vida selvagem. Antes de 2022, o pássaro que inspirou a animação “Rio” (2011) não era visto na natureza desde 2000.
O programa de reintrodução na Bahia estava prestes a retornar com mais uma soltura de ararinhas-azuis em junho. O plano aconteceria após um ano conturbado de disputas entre o governo brasileiro e a ACTP (sigla em inglês para Associação de Conservação de Papagaios Ameaçados), grupo privado da Alemanha que mantém o maior número de ararinhas do mundo e é parceiro da Blue Sky.
Mas os planos foram interrompidos em abril. Um teste positivo de circovirose em um filhote selvagem, nascido na natureza em dezembro de 2024 (atualmente recolhido e isolado), cancelou o programa.
Em junho, 13 ararinhas-azuis de cativeiro, que vivem num mesmo recinto (aviário) em Curaçá, testaram positivo para o mesmo tipo de circovírus. O vírus é conhecido como “doença do bico e das penas dos psitacídeos” (aves da família Psittacidae, como araras e papagaios). Outros 72 indivíduos que vivem em recintos diferentes no criadouro baiano testaram negativo. As 11 aves livres não foram testadas.
O ICMBio afirma que as aves livres precisam ser capturadas e examinadas para evitar maior disseminação do vírus em populações selvagens. Já a Blue Sky afirma que a captura poderia não resolver o problema porque acredita que o vírus já se encontra disseminado na região.
Empresa sugeriu “coleta não invasiva”. Como alternativa, a empresa propôs, e foi negada, a realização de “coletas não invasivas de material biológico” na natureza para verificar a presença do vírus entre psitacídeos de vida livre. “Isso permitiria um monitoramento eficaz sem causar estresse ou risco aos animais”, escreveu a Blue Sky em carta ao ICMBio no começo de julho.
Filhote selvagem infectado
O circovírus é altamente contagioso, levando à perda de penas, anormalidades no bico e imunossupressão. Mesmo animais assintomáticos transmitem o vírus, que pode permanecer em latência por meses ou anos. O vírus não traz risco à saúde humana e não afeta galinhas ou outras aves de produção.
A doença foi detectada pela primeira vez na década de 1970. Ela surgiu em cacatuas selvagens da Austrália e se espalhou pelo mundo através do comércio de aves. No Brasil, foi confirmada pela primeira vez em 1998, numa cacatua em cativeiro. Há poucos estudos sobre o vírus no país.
Em Curaçá, o vírus foi encontrado primeiro no filhote selvagem, de acordo com a Blue Sky. Ele saiu do ninho sem penas, soando o alarme para uma potencial doença.
O filhote foi testado em abril com outras 20 ararinhas do recinto de soltura, que estavam sendo preparadas para serem soltas em junho. Todas testaram negativo, com exceção do filhote. Porém, em novos exames em maio com o mesmo grupo, seis aves testaram positivo. Na repetição em junho, 13. As informações são da Blue Sky.
Animais são atraídos pelos comedouros e interagem com os indivíduos ainda em cativeiro. A transmissão do vírus entre populações de vida livre e cativeiro acontece porque, em programas de reintrodução de psitacídeos, é comum que os animais livres que passaram pelo recinto continuem frequentando o exterior do local. Além disso, as ararinhas em vida livre interagem com outros pássaros selvagens, como maracanãs e outros psitacídeos.
No recinto de soltura infectado, estavam 10 ararinhas transferidas num lote de 41 indivíduos em janeiro para o Brasil da Alemanha pela ACPT. As outras 10 eram três indivíduos nascidos em cativeiro no criadouro baiano e sete vindos de um criadouro em Minas Gerais e transferidos para Curaçá em 2023.
‘Ave positiva ficou negativa’
Eutanásia foi a medida sugerida para as aves infectadas. O plano emergencial foi montado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave), resultado de uma oficina virtual de dois dias, em maio.
A Blue Sky afirma que não foi consultada e nem convidada para elaboração do plano emergencial. No entanto, a entidade tem como coordenador do programa de reintrodução o biólogo Cromwell Purchase, sul-africano considerado o maior especialista da espécie e que passou os últimos 15 anos dedicado à reprodução da ararinha.
“É importante ter um painel com a participação de especialistas em ararinha-azul e circovírus, junto com órgãos ambientais, para discutir o melhor caminho e formas para dar continuidade ao programa de reintrodução da ararinha-azul e proteger a biodiversidade da caatinga.” – Ugo Vercillo, diretor da Blue Sky, ao UOL.
A empresa também tem receio da sugestão de eutanásia. “Uma das seis aves que inicialmente estavam positivas ficou negativa um mês depois”, disse Vercillo. “Então, matar assim, pode ser o caminho errado.”
Nenhuma ave morreu até agora. O filhote infectado está isolado em laboratório e passa bem. “Ele apresenta penas brancas, mas está com plenas condições de voo e sobrevivência”, disse.
Riscos de captura
Na carta enviada ao ICMBio, a Blue Sky alerta que há um elevado risco de morte ou ferimentos graves na captura. Além disso, afirma que as ararinhas livres estão bem adaptadas após três anos da soltura e teriam um papel importante como tutores das próximas aves reintroduzidas.
Entidade alega que captura pode ser “pouco estressante”. Já o ICMBio alega que os pássaros livres estão numa situação muito específica e que a recaptura pode ser feita de forma “pouco estressante” e usando os comedouros que eles frequentam.
“É bastante evidente o fato de que sua adaptação ao habitat ainda é parcial”, diz o ofício do ICMBio de 22 de julho. “[Eles estão] completamente habituados ao manejo ex situ [cativeiro], dependentes de alimentação suplementar, vinculados às ararinhas-azuis do plantel do criadouro e familiarizados com as estruturas, pessoas e recintos.”
Hoje existem cerca de 330 ararinhas-azuis no mundo, com 130 no Brasil. Além de Curaçá, existem pássaros no Zoológico de São Paulo.
“Nenhum detentor jamais confiará no Brasil de novo.” Para Purchase, que mora no criadouro em Curaçá desde sua criação, em 2020, a captura e eutanásia das aves infectadas serão o fim do programa de reintrodução. “A ararinha-azul estará extinta não apenas novamente, mas para sempre nas áreas selvagens do Brasil. Nenhum detentor internacional de ararinhas jamais confiará no Brasil de novo para mandar mais aves”, disse ao UOL.
Fonte: UOL