Uma pesquisa realizada no Instituto de Biociências (IB) da USP mostra que existem pelo menos três populações geneticamente distintas de araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) em território brasileiro. No Pantanal há dois grupos: norte e sul. O terceiro fica na região que compreende o norte do Brasil (sul do Pará) e o nordeste (região das Gerais: Piauí, Maranhão, Tocantins, Bahia). Os resultados do trabalho fornecem subsídios para o manejo adequado da espécie, além de dificultar a ação de traficantes de animais.
“Se uma ave for apreendida nas mãos de traficantes, será possível, com base no estudo, determinar qual a probabilidade de a ave ter sido retirada de um desses locais e, com isso, fornecer elementos que ajudem a estabelecer a rota de tráfico”, aponta a bióloga Flávia Torres Presti, que realizou uma pesquisa de doutorado sobre o tema.
A bióloga cita o exemplo de uma arara-azul apreendida com um traficante que relatou a polícia que trouxe a ave do Pantanal. “Pelas nossas análises verificamos que a probabilidade de arara-azul ter sido trazido do Pantanal era muito pequena. Os resultados da análise indicavam uma maior probabilidade de ela ter sido trazida de uma das duas outras áreas. Neste caso, a rota de tráfico utilizou os estados do norte e nordeste e depois se espalhou pelo Brasil”, conta Flávia. Segundo a bióloga, esse traficante já havia sido preso em várias regiões do país.
O estudo também possibilita a realização do manejo adequado das araras-azuis, visto que essas populações têm algumas características, como hábitos alimentares, bem distintos. Apesar de a diferença genética não ser tão acentuada, colocar uma ave em uma região diferente do seu habitat natural pode comprometer a sua sobrevivência. “A arara-azul é considerada vulnerável e poderá, no futuro, se tornar ameaçada de extinção em consequência do intenso tráfico e perda de habitat”, alerta Flávia.
No Pantanal, a alimentação da arara-azul é baseada no fruto de duas palmeiras: a bocaiuva e o acuri. Nas Gerais, elas se alimentam de frutos da piaçava e do catolé. Já na região do sul do Pará, as aves se alimentam de inajá, babaçu, tucum, gueroba, de alguns frutos de acuri ou bacuri e de macaúba ou bocaiuva. “Esses frutos de palmeiras apresentam características físicas distintas. Por exemplo, a consistência dos frutos ou presença de espinhos, que pode levar as aves a se adaptarem a essas diferenças. Por isso, a alimentação, entre outros aspectos, podem acentuar as diferenças genéticas entre os grupos”, esclarece.
Escalada
Para realizar o estudo, a pesquisadora foi a campo a fim de coletar sangue dos filhotes. Flávia precisou utilizar técnicas de escalada, pois as aves vivem em áreas de difícil acesso. No Pará, por exemplo, as araras-azuis fazem o ninho no interior de árvores a uma altura de 20 a 25 metros do solo. Nas Gerais, os paredões rochosos são o local escolhido para a chocagem de ovos.
A coleta de amostras de sangue de filhotes ocorreu na região das Gerais e do sul do Pará. Para as análises das aves do Pantanal, utilizou-se amostras disponibilizadas pelo Instituto Arara Azul. Além de Flávia, outra pesquisadora do IB também fez parte da empreitada: Adriana Ribeiro de Oliveira-Marques, que coletou material para uma pesquisa envolvendo araras vermelhas. Flávia realizou dois tipos de análise de DNA: a mitocondrial (genes herdados da mãe), e a nuclear (microssatélites), que mostra os genes herdados de ambos os pais.
A pesquisa baseou-se na hipótese da existência de três populações geneticamente distintas de araras-azuis que ocupariam as regiões do Pantanal, das Gerais e o sul do Pará. “Como são isoladas geograficamente, as aves de uma região não teriam como acasalar com as outras e, assim, cada um desses grupos evoluiria de maneira distinta”, explica. Segundo a bióloga, pensava-se também que as aves do Pantanal eram geneticamente idênticas.
O trabalho de Flávia revelou que as araras-azuis do pantanal se dividem em dois grupos: norte e sul. A análise mitocondrial revelou a existência de três grupos distintos: Pantanal norte, Pantanal sul, norte / nordeste. Já a análise de microssatélites apontou a existência de quatro grupos: Pantanal norte, Pantanal sul, norte, nordeste. “A existência dessas populações aumenta as chances de sobrevivência da espécie. Se todas fossem geneticamente iguais, e ocorresse algum tipo de mudança ambiental ou doença, todos os grupos poderiam se extinguir rapidamente devido a pouca variabilidade genética. Por isso, é importante conservar essas diferenças”, explica.
Fidelidade e monogamia
Flávia também constatou um índice de aproximadamente 81% de monogamia dos casais de araras-azuis. A constatação ocorreu a partir da análise de amostras coletadas de aves nascidas no mesmo ninho do Pantanal sul fornecidas pelo Instituto Arara Azul e do Pantanal norte com colaboração do biólogo Paulo Antas. Cada casal cria um ou dois filhotes em um mesmo ninho. “Geralmente as aves encontram um par e permanecem com ele por toda a vida ou até a morte de um deles. Por isso, existe uma probabilidade maior de duas aves serem irmãs se forem coletadas no mesmo ninho. Isso indica a monogamia do casal”, explica.
A pesquisadora analisou aves do mesmo ninho em anos consecutivos e alternados, ao longo de 9 anos de amostragem no Pantanal sul e de três anos no Pantanal norte. Partindo do pressuposto de que se o casal volta ao mesmo ninho, Flávia pode confirmar que as aves de anos diferentes do mesmo ninho devem ser irmãs.
As araras-azuis procriam uma vez ao ano, gerando um ou dois filhotes, no máximo. Se colocarem três ovos, apenas dois sobreviverão. “Os filhotes, ao nascerem, ficam cerca de três meses no ninho e, após saírem , ainda são dependentes dos pais para a alimentação. A separação total ocorre geralmente após 12 a 18 meses”, diz. Essas aves praticamente não migram e sempre ficam no local onde nasceram.
A pesquisa Caracterização da diversidade genética, da estrutura populacional e do parentesco de arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacintthinus) por meio da análise dos genomas nuclear e mitocondrial foi apresentada em janeiro deste ano ao Instituto de Biociências, sob a orientação da professora Cristina Yumi Miyaki.
Fonte: O Repórter