As mudanças climáticas podem fazer o planeta ultrapassar uma série de pontos de não retorno, termo utilizado pela ciência para identificar os limiares mais críticos do clima. Se esses limites forem superados, haverá danos abruptos e irreversíveis, com potencial de desencadear impactos em outros sistemas, mesmo se as temperaturas globais forem reduzidas.
À medida que o aquecimento médio da Terra em relação ao período pré-industrial alcança ou ultrapassa 1,5ºC, como observado em 2024 e nos primeiros meses de 2025, a probabilidade de ultrapassar os pontos de não retorno aumenta, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC).
Esses potenciais danos irreversíveis foram um dos temas da conferência do climatologista Carlos Nobre no Climate Change Summit, realizado nos dias 2 e 3 de maio, no Salão de Atos da UFRGS – relembre a reportagem da Climática sobre o painel que discutiu os impactos desiguais provocados pela enchente de 2024 no Rio Grande do Sul.
Um dos mais conceituados pesquisadores do clima do país, Nobre destacou que basta ultrapassar os pontos de não retorno da Amazônia – mediante o desmatamento e a consequente perda de capacidade regenerativa da floresta – e do permafrost – com o derretimento do solo congelado do Ártico – para que ocorra um acréscimo de mais de 500 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera, contribuindo para um aquecimento devastador no planeta.
“Se passarmos desses pontos de não retorno, vamos chegar em 2050 com 3 ou 4 graus de aumento (da temperatura média da Terra)”, afirmou o pesquisador – uma comparação entre os cenários de aquecimento de 1,5ºC e 3ºC nas cidades, realizada pelo World Resources Institute (WRI), pode ser lida aqui.
Em sua palestra no Climate Change Summit, Nobre abordou, além do permafrost e da Amazônia, outros pontos de não retorno, como a extinção superior a 90% dos recifes de corais – se o aquecimento médio alcançar 2ºC – e o derretimento de camadas de gelo da Antártica e da Groenlândia.
O potencial de elevação do nível do mar decorrente do degelo, apontado por Nobre, ganhou novas perspectivas ontem (20/5), em estudo que alerta para o potencial impacto do aumento do nível dos oceanos, mesmo que se mantenha o aquecimento atual do planeta.
Desmatamento e aquecimento global podem degradar 70% da Amazônia
Carlos Nobre investiga aspectos críticos do clima da Amazônia há mais de 35 anos. Em 1990, foi coautor de um artigo pioneiro que alertou para o possível processo de “savanização” da Amazônia, caso o desmatamento da floresta avançasse. Desde 2016, o pesquisador afirma que um desmatamento de 20% a 25% da Amazônia, somado a um aquecimento global entre 2ºC e 2,5ºC, pode resultar em um ponto de não retorno. A partir desse marco, entre 50% e 70% da floresta se autodegrada.
Caso esse cenário se confirme, segundo Nobre, só restaria Amazônia como a conhecemos junto aos Andes, devido aos elevados índices de precipitação daquela região.
“Ainda mantém a floresta, mas grande parte, no mínimo 50%, mais provavelmente 70%, vai virar um sistema altamente degradado. Vai parecer uma Savana Tropical ou o Cerrado, mas sem a biodiversidade da Savana ou o carbono que o Cerrado armazena no solo. Isso vai jogar mais de 250 bilhões de toneladas (de gases-estufa) até 2100, se passarmos desse ponto de não retorno até 2050. Perderemos a maior biodiversidade do planeta”, disse o pesquisador em sua conferência.
“Outro dado muito perigoso é que a degradação dessa biodiversidade e das florestas tropicais, da Amazônia, em especial, vai gerar inúmeras epidemias. O risco é muito grande, inclusive de pandemias”, completou Nobre.
Além dos impactos nas emissões de carbono, biodiversidade e proliferação de doenças, o processo de degradação irreversível da Amazônia comprometeria o regime de chuvas em grande parte do território nacional.
Derretimento de gelo da Antártica e Groenlândia eleva nível do mar com impacto em áreas costeiras
Carlos Nobre destacou que o derretimento de mantos de gelo é responsável por 50% do aumento do nível do mar – o aquecimento oceânico é o outro grande responsável pela elevação, já que o calor reduz a densidade da água e a expande. Com um aquecimento de 2,5ºC, observa Nobre, “a gente vai passar de 1 metro de aumento do nível do mar em 2100, e pode chegar a 3 metros em 200 anos”.
Somente a perda de gelo da Groenlândia foi responsável por cerca de 17% da elevação do nível do mar entre 2006 e 2018, segundo o pesquisador. A situação da Antártica Ocidental também preocupa, afetada sobretudo pelo aquecimento dos oceanos e por mudanças na circulação e no aquecimento atmosférico.
O alerta de Nobre é reforçado por uma pesquisa publicada ontem (20/5) na revista Communications Earth and Environment, do grupo Nature, noticiada pela CNN Brasil e pelo The Guardian. Segundo o estudo, intitulado Aquecimento de +1,5ºC é muito alto para camadas de gelo polar, mesmo o aquecimento atual de 1,2ºC – média global dos últimos 20 anos – já acelera o degelo e a elevação do nível do mar, com potencial para desencadear uma “migração terrestre massiva, em escalas nunca testemunhadas pela civilização moderna”, conforme o físico Jonathan Bamber, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, coautor do artigo.
Ainda segundo os pesquisadores, a elevação do nível do mar entre 1 e 2 metros ao longo do século seria inevitável e uma “ameaça existencial para as populações costeiras do mundo”.
Degelo do permafrost pode liberar bilhões de toneladas de metano
O permafrost ocupa aproximadamente 15% da superfície terrestre. É uma extensa camada de solo, formada por terra, rochas e sedimentos congelados, que se formou ao longo de milhares de anos em regiões frias, como o planalto tibetano e o Ártico, em países como Canadá, Rússia e Estados Unidos (Alasca).
Um aspecto crucial do permafrost é o armazenamento de matéria orgânica ao longo de milênios, tornando-o um sumidouro de carbono – estimativas indicam que o permafrost acumule mais que o dobro da atual quantidade de carbono na atmosfera.
Nas últimas quatro décadas, o Ártico aqueceu quatro vezes mais rápido que o resto do planeta. “Se o aquecimento médio global ultrapassar 2,5ºC, o permafrost pode liberar mais de 200 bilhões de toneladas de gases”, afirmou Nobre.
Segundo o pesquisador, o metano – principal gás liberado pelo degelo do permafrost – é 30 vezes mais potente que o gás carbônico em termos de aquecimento. Sua liberação pelo permafrost poderia acelerar o aumento das temperaturas, mesmo com o período breve de residência do gás, entre nove e 12 anos, enquanto o CO2 pode permanecer 150 anos na atmosfera. O degelo do permafrost também tem potencial de liberar patógenos, como vírus e bactérias.
Um dos aspectos visíveis da degradação do solo congelado no Ártico é a formação de crateras – como mostra esta reportagem em vídeo.
Ritmo do aquecimento desde 2023 “é um enorme mistério”
Nobre destacou ainda que os melhores modelos climáticos previram que o recente fenômeno El Niño seria o terceiro mais extremo já registrado, contribuindo para um aquecimento médio global que seria de 1,3°C em 2023, ante 1,2°C em 2022.
No entanto, as médias globais de 2023 e 2024 ficaram em 1,45ºC e 1,55ºC, respectivamente, com os primeiros meses de 2025 continuando a bater recordes – um padrão que persiste mesmo após o fim do El Niño e o início do La Niña, fenômeno caracterizado por resfriar as águas do Oceano Pacífico Equatorial.
O quadro se agrava com o recorde da quantidade de vapor d’água na atmosfera em 2024, 5% superior ao período 1991-2020, contribuindo para o aumento do efeito estufa e eventos mais extremos e frequentes.
Em que pese todo o conhecimento existente sobre o conjunto de fatores que contribui para o aquecimento do planeta, o ritmo da elevação média da temperatura global nos últimos anos ainda não foi totalmente compreendido pela comunidade científica, segundo Nobre.
“Temos um enorme mistério aqui”, afirmou o pesquisador. “Milhares de cientistas estão tentando explicar por que a temperatura aumentou 0,3°C de 2022 para 2023-2024. Estamos profundamente preocupados, pois não podemos prever se esse aquecimento continuará nesse ritmo, mas também não sabemos se vai diminuir.”
“A última vez que o planeta esteve nessa temperatura foi há 120 mil anos, no último período interglacial. Durante todo o Holoceno – os últimos 11 mil anos de clima estável que permitiram o desenvolvimento da civilização humana – nunca chegamos nem perto desses patamares”, completou o climatologista.
Nobre citou ainda uma pesquisa do jornal The Guardian, que perguntou a 380 especialistas em clima do IPCC qual aquecimento eles preveem para o planeta até 2100. Com cenários variando entre menos de 1,5ºC e mais de 5ºC em relação ao período pré-industrial, 77% dos cientistas esperam um aquecimento médio de 2,5ºC ou mais, com consequências potencialmente catastróficas para todos os pontos de não retorno do planeta.
Diante dessa perspectiva, além de defender estratégias de adaptação, Nobre acredita que “as novas gerações devem assumir a liderança na busca de trajetórias de sustentabilidade para o planeta, com ênfase em justiça social e climática, principalmente via empoderamento dos jovens e mulheres”.
Ainda conforme o pesquisador, a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris reforça o desafio da COP30 de conscientizar os países a zerar suas emissões dentro de 15 anos. Segundo Nobre, o Brasil tem condições de ser o primeiro país a zerar suas emissões líquidas até 2040.
Fonte: Matinal