Não podemos discutir mudança climática sem incluir a justiça climática nas decisões, porque não adianta a gente salvar as árvores, se a gente não salvar quem está protegendo as árvores.” Foi assim que Txai Suruí, líder indígena ativista brasileira da etnia suruí, finalizou sua participação no seminário internacional “O Salto Amazônico”, em maio, nos Estados Unidos. O encontro foi promovido pelo Lab Brazil, da Universidade de Princeton. Na plateia da renomada universidade, acadêmicos, ambientalistas, empreendedores e pesquisadores estavam reunidos para pensar soluções para uma economia de baixo carbono para a Amazônia.
Às vésperas da viagem, Txai listava os sinais de injustiça climática no Brasil para incluir no seu discurso, lido em inglês. O mês de abril havia sido repleto de exemplos, mas dois deles se conectavam diretamente com o tema. O primeiro, a morte de uma jovem de 12 anos do povo Ianomâmi, em mais um capítulo da tragédia humanitária da qual são vítimas desde que os garimpeiros começaram a fazer pressão sobre o seu território. O segundo, a maior taxa de desmatamento na Amazônia em 15 anos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram mais de mil quilômetros quadrados de floresta derrubados.
“Para a transição ser justa, ninguém pode ficar para trás”, defendeu a jovem ativista em Princeton, ostentando no seminário o mesmo cocar de penas coloridas que havia usado em Glasgow, na Escócia, durante a COP 26. Na ocasião, ganhou notoriedade internacional ao ser a primeira indígena a discursar na abertura de uma conferência do clima. Txai é coordenadora do movimento da juventude em defesa dos direitos dos povos tradicionais de Rondônia.
A palavra-chave em seu discurso – justiça – é também tema central de inúmeras discussões que se tornaram mais frequentes com a pandemia, inclusive no ambiente corporativo. A chamada injustiça climática ou injustiça socioambiental se refere ao apontamento de como os impactos das mudanças climáticas são e serão sentidos de forma desigual por por diferentes grupos e lugares.
Outro termo para entender essa problemática é a “vulnerabilidade”, determinada por uma mistura de fatores socioeconômicos, ambientais e culturais, mas que também é exacerbada por questões como falta de políticas de habitação, planejamento urbano, distribuição de renda e acesso a saúde e saneamento básico.
Estudo recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) mostra que cerca de 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas estão altamente expostas a mudança do clima. O relatório deixa claro que há uma associação direta entre subdesenvolvimento e alta vulnerabilidade a riscos climáticos. Entre 2010 e 2020, a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades, por exemplo, foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis, em comparação com áreas com vulnerabilidade muito baixa.
“A vulnerabilidade é maior em locais com pobreza, desafios de governança e acesso limitado a serviços e recursos básicos, conflitos violentos e altos níveis de meios de subsistência sensíveis ao clima (por exemplo, pequenos agricultores, pastores, comunidades de pescadores)”, destaca o IPCC. São apontados como lugares mais vulneráveis África Ocidental, Central e Oriental, sul da Ásia, América Latina, pequenos Estados insulares e o Ártico. A vulnerabilidade é, continua o IPCC, ainda exacerbada pela desigualdade e marginalização ligadas a gênero, etnia e/ou baixa renda.
“A flexão de gênero, raça e etnia é indissociável da discussão sobre justiça climática no Brasil”, argumenta Iago Hairon, que está à frente do Programa para a América Latina da Fundação Open Society. Por muito tempo, diz ele, os esforços de proteção da Amazônia por organizações filantrópicas, não governamentais e organismos multilaterais estiveram concentrados em programas de conservação da floresta e em políticas no âmbito nacional. Hoje, porém, há mais clareza de que isso não é suficiente. “É preciso engajar áreas urbanas amazônicas e suas populações, constituídas principalmente por indígenas e afrodescendentes”, diz Hairon.
Ao conectar os direitos humanos com as mudanças climáticas, a Open Society, rede internacional de filantropia fundada pelo magnata George Soros, ampliou, em 2021, seu portfólio de doações, incluindo a justiça climática no foco de atuação. O orçamento de 2021 foi de US$ 1,3 bilhão, dos quais US$ 5 milhões foram repassados a projetos com esse recorte no Brasil e na América Latina.
O movimento da justiça climática despontou a partir dos anos 1990, época que ainda se tinha alguma suspeita de que o homem podia afetar o clima. Os últimos relatórios do IPCC, que reúnem dezenas de pesquisadores e cientistas de diversas nacionalidades, confirmaram a hipótese. Não há dúvidas: as mudanças climáticas são reais, causadas pelo homem, e estão se intensificando em ritmo acelerado. Mas foi na COP 26 em 2021 que o tema ganhou visibilidade, depois de a pandemia escancarar as desigualdades do mundo e os líderes entenderem que a gravidade e a frequência de eventos extremos está crescendo.
No Brasil, cuja economia depende das commodities, os impactos da mudança climática vão ser sentidos do Cerrado à região do Matopiba – que compreende os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia -, passando pelos agricultores familiares do semiárido, quilombolas, populações ribeirinhas, indígenas e moradores de áreas urbanas de risco.
“Quando chove em São Paulo, por exemplo, não é a Faria Lima ou a Avenida Paulista que alaga, mas Brasilândia, onde eu moro”, compara Amanda Costa, fundadora do Instituto Perifa Sustentável . Ela é também conselheira do Pacto Global da ONU, na categoria juventude, e vice-curadora no Global Shapers, a comunidade de jovens do Fórum Econômico Mundial. Localizada no extremo norte da cidade, Brasilândia é, segundo o Mapa de Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, a região com concentração de 25,4% de residências em favelas em relação ao total de domicílios.
Costa já participou de três conferências do clima, tendo sido a última a de Glasgow. “São sempre os mesmos que detêm o poder de fala e o poder de decisão: os homens brancos e heteronormativos, do Norte Global, que não entendem, por exemplo, o que é viver numa periferia ou numa comunidade indígena”. Mas ela admite que uma mudança global está em curso: “Se as empresas não se adaptarem para essas novas demandas sociais, elas correm o risco de não sobreviver”. O mesmo se aplica aos governos, argumenta, caso não incluam os princípios da justiça climática nas políticas públicas.
No Perifa Sustentável, a ativista diz que sua missão é pressionar os tomadores de decisão para que protocolem e aprovem leis de emergência climática. Assim, ficaria mais fácil criar planos de adaptação, mitigação, contingência climática e até de segurança alimentar. A mudança do clima já impacta os preços dos alimentos. Outros vetores são a pandemia, que desarticulou as cadeias produtivas globais, e agora a guerra na Ucrânia que, ao lado da Rússia, é um grande produtor e exportador de alimentos.
Em maio, o Banco Mundial atualizou a linha de pobreza: de US$ 1,90 para US$ 2,15. Para Gustavo Pinheiro, coordenador de Economia de Baixo Carbono, do Instituto Clima e Sociedade (ICS), a recente atualização pode comprometer o cumprimento das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 10, que trata da redução das desigualdades dentro dos dos países e também entre eles. “Essa atualização acentua a preocupação com a justiça climática”, diz, que provoca impactos multifacetados, que vão da desigualdade ao êxodo forçado, passando pelo risco de insegurança alimenta e crise hídrica.
O Brasil está na categoria dos países mais desiguais do mundo: 1% da população mais rica detém quase um terço da renda total do país. “Enquanto os tomadores de decisão e os negociadores se mantiverem com pouca representatividade e diversidade, dificilmente a justiça climática vai ser central. O centro da negociação precisa ser diverso, precisa ser plural”, reforça Flávia Bellaguarda, gerente de Relações Internacionais no Centro Brasil no Clima e uma das fundadoras da La Clima, rede de advogados latinos com foco em reduzir o gap da legislação com a questão climática.
Bellaguarda admite que o tema ainda é novo e pouco claro para muitos agentes econômicos. É taxativa, no entanto, ao defender que a justiça climática precisa ganhar espaço na “governança climática e ocupar um lugar central nas políticas públicas e nas decisões do setor privado”.
Para Sônia Consiglio, especialista em Sustentabilidade e SDG Pioneer do Pacto Global , o mercado vem, sim, começando a discutir justiça climática, mas acredita que ainda falta clareza sobre o tema. “Temos uma longa jornada pela frente, mas estamos no caminho e o momento é propício para discutir o assunto”, argumenta, dado que o mundo corporativo vem buscando adotar práticas ambientais, sociais e de governança – o que o mercado define como ESG, na sigla em inglês.“Independente do nome, temos que avançar e traduzir o conceito da justiça climática de uma forma mais clara”, finaliza.
Fonte: Valor econômico