Três tamanduás, uma onça-pintada e um cachorro dormem amontoados sob um clima de preguiça e aconchego. A cena facilmente poderia ter sido retirada de um desenho animado ou livro infantil, mas é real.
O momento foi gravado pelo Instituto Onça-Pintada (IOP), cuja sede fica em Mineiros (GO), e publicado em 1º de janeiro deste ano no Instagram. Acompanhada da legenda “Siesta [sic] aqui na creche”, a ONG pede ajuda financeira “para melhorar ainda mais a qualidade de vida de nossos órfãos”. “A sua doação é muito importante”, acrescenta a publicação, curtida por 21,7 mil pessoas e vista por 101,7 mil.
A cena, considerada “fofa” e “linda” por uma série de internautas, esconde, no entanto, um lado obscuro do instituto. A ONG foi criada em 2002 com a missão de promover a conservação da onça-pintada, suas espécies de presas naturais e de seus habitats. Mas não é isso o que tem acontecido.
Ao menos 72 animais sob a guarda do Instituto Onça-Pintada morreram nos últimos sete anos por negligência ou imperícia, revela relatório do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) obtido com exclusividade pelo Metrópoles.
Segundo o Ibama, macacos, veados, pássaros, lobos e onças vieram a óbito após suposta displicência do criadouro conservacionista. Os animais morreram predados por animais silvestres, envenenados, picados por serpentes ou espancados por similares. Do total, 52 são espécies ameaçadas de extinção.
Por conta disso, a ONG foi multada em junho deste ano pelo Ibama em um total de R$ 452 mil. Três infrações foram aplicadas: por matar 72 espécimes da fauna silvestre nativa em desacordo com a autorização obtida; por praticar maus-tratos aos 72 animais ao não lhes garantir segurança nos recintos em que estavam presos; e por fazer funcionar atividade utilizadora de recursos ambientais contrariando normas legais ao expor os animais.
O Ibama também decidiu, ao visar a segurança dos animais, que o Instituto Onça-Pintada seja embargado para as atividades de visitação, recebimento, destinação, alienação (a qualquer justificativa) e reprodução de espécimes até a apresentação de projetos de conservação adequados.
“O IOP não possui capacidade técnica e estrutural para manutenção de animais com segurança. Os animais ali mantidos estão sujeitos à ataques de predadores silvestres e de ratos sem que possam fugir ou se defender, pois estão presos. Também são impedidos de se aproximarem de animais de outros e de sua espécie, sem fazê-lo com cautela e de forma gradual, o que culmina em morte decorrente de espancamento pelos demais. O controle de roedores é realizado de forma inadequada ou negligente, o que possibilita o acesso dos animais do plantel ao veneno e consequente morte por envenenamento”, conclui nota informativa do Ibama.
Além dos 72 óbitos por negligência ou imperícia, outros 53 animais morreram no criadouro desde 2017, segundo o levantamento do Ibama. O dano ambiental pode ser maior ainda, uma vez que a causa da morte é descrita como desconhecida em 17 casos.
“Salienta-se que o plantel atual é de 109 animais. Ou seja, considerando-se os anos avaliados, no total o criadouro perdeu cerca de 70% de seu plantel, que foi reposto com recebimento de animais, já que a reprodução no mesmo período resumiu-se a 37 animais, as mortes superaram em três vezes a reprodução. Considerando tratar-se de um criadouro de fauna silvestre para fins de conservação, pode-se afirmar que não tem atingido seu objetivo possuindo um saldo negativo, ou seja, mata mais animais que nascimentos no criadouro”, afirma o Ibama.
As mortes
Há registros de casos de negligência e imperícia desde ao menos 2016. Naquele ano, um lobo guará e um veado-catingueiro foram mortos após picada de serpente, e duas araras-azul predadas por jaguatirica.
As situações são recorrentes, o que chamou a ateção do Ibama. Dezesseis tucanos-de-bico-verde, ave nativa do Brasil, Bolívia, Argentina e Paraguai, morreram em 2020 após um gato-palheiro entrar no viveiro. No mesmo ano, três antas e nove veados foram predados por onça-pintada da natureza. O felino também matou um cervo-do-pantanal no ano passado.
A morte por intoxicação também aconteceu mais de uma vez. Em 2017, três saguis-de-tufos-pretos morreram após consumirem “acidentalmente” venenos de ratos. Em 2018 foi a vez de um araçari-de-minhoca morrer intoxicado, e em 2019, uma onça-parda.
Duas onças-pintada, animal que dá nome à ONG, também morreram por negligência, segundo o Ibama. Os felinos vieram a óbito em 2020. A causa da morte é descrita como “insuficiência pancreática exócrina”, cujos sintomas são facilmente visíveis e o tratamento, fácil.
“Observa-se que a predação por animais silvestres ocorre ao longo dos anos havendo clara imperícia em impedi-la ou negligência em evitá-la. O mesmo ocorre para a predação por ratos que, quando aparentemente busca ser contida se negligência ou se é imperito em evitar que os espécimes silvestres mantidos tenham acesso ao veneno e morram decorrente de sua ingestão. No que concerne à morte por briga, ela é registrada em 2017, depois em 2018 e, também, em 2021”, afirma o Ibama.
“Ou seja, os procedimentos não foram adequados ou aprimorados de forma a impedir que os animais se matem. Animais mais fracos ou não pertencentes ao bando são fechados em cativeiro com outros que o espancam e matam”, acrescenta o órgão ambiental, no relatório.
Exposição
Além da causa mortis, o Ibama usa publicações feitas nas redes sociais do Instituto Onça-Pintada para embasar a acusação de negligência e a exposição de animais para “obter vantagem pecuniária”, um dos agravantes do auto de infração.
Uma das provas é o vídeo descrito no início desta reportagem. O cachorro, um animal doméstico, interage artificialmente com a onça e os tamanduás, silvestres. Além disso, há presa e predador juntos, situação que é alvo de críticas de biólogos. “O que pode parecer interessante ao primeiro olhar, na verdade, subverte o comportamento natural da espécie”, diz o Ibama.
“Para a categoria de criadouro conservacionista também é vedada a exposição. No entanto, o IOP utiliza a internet como via de exposição dos animais. Nesta exposição eles demonstram animais silvestres sendo tratados como animais domésticos, juntam animais de espécies diferentes (presas com predadores) e, também, espécies silvestres com espécies domésticas. Portanto, além da exposição, esta ainda subverte a proposta de um criadouro conservacionista”, descreve o órgão ambiental.
Além disso, o inciso V do art 4 da resolução 489/2018 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) veda a exposição de animais por criadouro conversacionista, como o Instituto Onça-Pintada.
“Finalmente é inadequado a interação com os animais como se eles fossem domésticos, da família, e sua exposição na internet, o que não se alinha com a função de um criadouro conservacionista e, não se encontra previsto ou autorizado nas atribuições da atividade, ao contrário, é vedada na resolução Conama nº 489/18”, afirma o Ibama.
O que diz o IOP
O Instituto Onça-Pintada foi procurado na quinta-feira (18) por meio da caixa de mensagens que disponibiliza em seu site, já que não é informado nenhum contato telefônico no endereço eletrônico do órgão. A reportagem reforçou o contato por meio das redes sociais do responsável pela ONG, o biólogo Leandro Silveira, que tem mais de 600 mil seguidores no Instagram, 2,5 milhões no TikTok e 2,3 milhões no Facebook. Não houve resposta. O espaço segue aberto.
No âmbito do processo que corre no Ibama, contudo, a defesa da ONG informou entender que a autuação merece ser anulada devido a “diversos vícios formais e procedimentais que a maculam”.
“O criadouro está situado em área rural, contígua ao Parque Nacional das Emas, com incidência significativa de animais selvagens, podendo estar sujeito às intempéries inerentes à existência em tal ambiente, bem como ao lado de propriedades rurais onde circula a fauna típica da região. Por conhecer os riscos de ataques inerentes à sua localização, o IOP está atento às melhores técnicas aplicáveis e, para fins de garantir a segurança de suas instalações, os recintos são equipados com revestimentos e cercas de tela”, afirma os advogados.
Apesar dos 125 óbitos registrados nos últimos sete anos, o IOP nega haver um alto índice de mortandade no criadouro e assegura não ser possível atribuir as mortes a atos de negligência, imprudência ou imperícia.
“Houve casos em que predadores selvagens foram capazes de romper os equipamentos de segurança que resguardam os recintos e, lamentavelmente, atacaram os espécimes alojados no criadouro. O IOP imediatamente tomou todas as providências para reconstruir as cercas e telas de proteção, a fim de restabelecer o isolamento dos recintos e evitar novos ataques”, relata o instituto.
“Com relação à predação por serpentes, cumpre elucidar que a única medida de contenção efetiva seria o emprego de vidro como revestimento dos recintos. Tal material, contudo, não é o recomendado pelas normas técnicas para a manutenção das espécies com que trabalha o criadouro, inclusive por evitar uma adequada circulação de ar”, complementa.
A ONG afirma também que as situações são absolutamente imprevisíveis e irresistíveis, de modo que não servem como prova alguma de negligência.
Sobre os envenenamentos, explicou que a substância tóxica somente foi acessada pelos animais pois teria sido carregada pelos próprios roedores para o interior dos recintos. “O IOP nunca teve por prática colocar veneno em locais que seriam alcançados pelos espécimes sob a sua guarda e manutenção, pois bem conhece os riscos que tal atitude representaria”, assegura a defesa.
Já em relação às brigas entre animais da mesma espécie, o instituto diz se tratar de algo comum à natureza animal (e humana). “Ao IOP seria impossível garantir que os espécimes nunca entrariam em conflito, até porque na própria natureza tais situações ocorrem. Tampouco poderia se pretender que o criadouro mantivesse cada espécime em isolamento dos demais, o que seria extremamente prejudicial ao seu desenvolvimento, bem como inviabilizaria a reprodução com viés conservacionista”, defendem.
Por fim, a defesa alega que as infrações foram aplicadas sem a ausência de prévia e indispensável imposição de advertência.
Fonte: Metrópoles