Um novo cachorrinho era a última coisa da qual a escritora e especialista em comportamento de cães Alexandra Horowitz precisava em 2020. Sua família – três humanos razoáveis, dois cães idosos e um gato tranquilo – já estava “repleta de pelo de animal”, ela escreve em The Year of the Puppy, seu último livro. A pandemia estava apenas começando. Por que abrir a porta para o caos?
Por que alguém arrumaria um novo cachorrinho durante a pandemia? (Por que não?) Além das razões usuais, havia considerações científicas para Horowitz, que dirige o Laboratório de Cognição Canina no Barnard College de Nova York e cujos livros incluem o best-seller Inside of a Dog: What Dogs See, Smell and Know. Há muito fascinada pelo “umwelt”dos cães – a maneira como experimentam o mundo -, ela nunca havia estudado o desenvolvimento de um filhote desde suas origens como “uma bolinha de pelo que choraminga”, como ela escreve, até a adolescência e além dela. Essa parecia ser a oportunidade perfeita.
Ela se imaginou como alguém equivalente ao comportamento canino descrito pelo psicólogo suíço Jean Piaget, que usou os próprios filhos como sujeitos para a formulação de suas teorias da psicologia do desenvolvimento. Mas The Year of the Puppy”, lançado este mês pela Viking, é menos ciência (embora seja muito científico) do que um livro de memórias pessoais, já que a chegada desse ser pequeno e barulhento tirou a família dos eixos. “Acontece que estávamos muito misturados. E, como observadora, não sou objetiva”, disse Horowitz em uma entrevista recente.
Depois de ler sobre o que aconteceu em seguida, o que você quer é conhecer o cão em questão, uma fêmea chamada Quid (abreviação de Quiddity). E lá estava ela outro dia, esperando com Horowitz na calçada em frente a seu apartamento em Manhattan, cachorrinha mestiça de tamanho médio com pelagem preta, focinho estilo schnauzer e sobrancelhas de Brejnev, que lhe davam a aparência de uma velha sábia. “É mais fácil para ela se a gente se encontrar lá fora, porque ela é nossa cúmplice, e estamos todos indo para casa juntos”, explicou Horowitz, enquanto Quid cheirava e latia como que para cumprimentar. “Ela expressa seu entusiasmo latindo. Quer dar um biscoito a ela?”
A conversa continuou no apartamento de Horowitz, onde Quid se dedicou a dois de seus passatempos favoritos: perseguir uma bola de tênis e ser acariciada por Horowitz. Edsel, o gato, esparramado no bloco de anotações do repórter, derrubou a caneta e começou a ronronar amigavelmente. “O gato gosta de encontrar o objeto que você está usando e sentar nele”, comentou Horowitz.
Como Horowitz tinha contato a mulher que adotara a mãe de Quid, pôde conhecer os filhotes no dia em que nasceram. Mas, quando trouxe Quid para casa, com pouco menos de dez semanas, percebeu que não se apegara totalmente a Quid logo de cara. E sua suposição anterior de que as idiossincrasias caninas como pular, latir e sentir ansiedade se originavam das primeiras experiências de um cão não foi apoiada pelos fatos. “O início da vida dela não foi cheia de traumas, e mesmo assim ela não era a cachorrinha que eu esperava que fosse no início. Ela não respondia a nós da maneira que eu queria”, resumiu Horowitz, de 53 anos. Quid era impulsiva, ansiosa para correr desembestada atrás de esquilos e outras criaturas, e inclinada a latir mais incansavelmente e com propósito menos aparente do que os dois cães mais velhos (agora, infelizmente, falecidos).
E assim o livro é tanto sobre como Horowitz se adaptou a Quid quanto como ele se adaptou ao crescimento, tornando-se “uma criatura requintadamente sensível, naturalmente ágil, doce e amorosa. Um membro da nossa família”, escreve.
Enquanto conversávamos, o marido de Horowitz, o escritor e editor Ammon Shea, passou rumo à cozinha. Qual era a opinião dele sobre Quid? Ele parou e pensou: “Acho que ela é fascinante, cheia de emoção e amor, é a alegria de viver envolta em pelo – muito pelo -, e seu entusiasmo é desmedido, o que é bom. Ninguém liga para um cão cansado. Ela também acaba sendo uma chata por causa desse entusiasmo descontrolado.”
Shea, editor e pesquisador do Merriam-Webster, também é escritor, daqueles que gostam de investigar a fundo um assunto; seus livros incluem “Reading the OED: One Man, One Year, 21,739 Pages”. Horowitz já trabalhou no Merriam-Webster como lexicógrafa – definindo palavras – depois de se formar em filosofia na Universidade da Pensilvânia. Seu trabalho seguinte foi de verificadora de fatos na revista The New Yorker. Ela voltou aos estudos e fez mestrado e doutorado em ciência cognitiva na Universidade da Califórnia, em San Diego, com uma tese chamada “Os Comportamentos das Teorias da Mente e um Estudo de Caso de Cães Brincando”.
Os dois se conheceram em 2004, quando Shea, então trabalhando para uma empresa de móveis, foi contratado para ajudar Horowitz em sua mudança para um novo apartamento. “Nós nos conhecemos lexicograficamente”, observou ele. Quando ele entrou na casa, Horowitz disse ao cão que tinha na época: “Está tudo bem, Pumpernickel.” (Quem leu Life of a Dog vai reconhecer Pumpernickel, que tinha um papel de destaque.) “E perguntei: você conhece a etimologia da palavra pumpernickel? Ela sabia a etimologia, embora tenha havido um leve desentendimento. Eu disse ‘diabo flatulento’ e ela disse ‘duende brilhante’”, contou Shea. Cinco anos depois, casaram-se.
No Laboratório de Cognição Canina, Horowitz estuda o comportamento dos cães, usando animais trazidos por voluntários. Também ministra seminários de cognição canina, de contação de histórias e de não ficção criativa.
Embora ela e a família tenham uma casa no norte de Nova York, onde passaram grande parte da pandemia, ela acredita que a cidade é um excelente lugar para um cachorro – com os cheiros, a quantidade de possíveis amigos cães, as novas experiências, a conexão com seus humanos. (Ela não gosta de dizer “dono”: “Quanto mais tempo vivo com cães, menos penso neles como propriedade.”) “A cidade é muito envolvente, e dá para ver que um cachorro na cidade pode viver excepcionalmente bem. Na cidade, é preciso se concentrar e estar atento àquilo de que o cão precisa: caminhadas, socialização. E os cheiros são fenomenais.”
É claro que a experiência de criar Quid foi intensificada pela pandemia, como para tantas pessoas em posição semelhante. “Eu a via como uma guardiã do tempo, o que era importante porque um dia se misturava um no outro. Nada em nossa vida parecia trazer esperança, mas há esperança quando você adiciona um cachorrinho à família.”
Agora que os dois cães mais velhos morreram, a família se mudou novamente: três humanos, uma cadelinha e um gato que aprenderam com ela que é divertido, quando alguém chega em casa, recebê-lo correndo pelo corredor. (“Então ele não sabe o que está fazendo lá”, comentou Horowitz.) “O gato ainda está provavelmente mais interessado nela do que ela está nele. A diferença entre as espécies é muito óbvia. Eles não se comunicam muito, por isso é uma questão de tolerância mútua.”
Assim como Quid aprendeu com Horowitz, Horowitz aprendeu com Quid. “Sinto agora que eu estava muito focada no comportamento dos cães. Nada me escapa, e foi demais para a cachorrinha suportar. Com o tempo, quando comecei a diminuir meu apego à ideia de que ela deveria ser alguém diferente do que era, passei a apreciá-la como realmente ela é.”
Ou seja: integrada à família, alerta a planos e atividades, fisicamente presente, infinitamente feliz por ser acariciada, beijada e abraçada. “Adoro o jeito como Quid muda. Gosto de vê-la com o passar do tempo. Gosto de ver como aprendeu a lidar com bolas de tênis e como adora ir atrás delas. Você se apaixona não pelo que imaginou, mas pela personalidade deles. É a individualidade dela que amo”, disse Horowitz.
Fonte: Estadão