Hoje, mais um dia útil. Vou para o trabalho. Cedo. Seis da manhã.
Cruzo municípios, como todo dia. Como todo dia, observo o mundo e sou obrigado a observá-lo.
Na rodovia, meu dia inicia-se com um cão atropelado ao meio-fio. Morto. Paisagem cotidiana para quem cotidianamente circula em estradas.
Sigo. Rádio ligado em uma estação de notícias. Entrevista com o criador de uma franquia de açougues gourmets. Impressionante como consegue falar com tanta tranquilidade de seus “negócios” sem a mais remota consideração sobre o óbvio fato de que seu “produto” são animais e que animais não são coisas inanimadas. Ele lembra, com orgulho, da postura de seu pai, pecuarista, que, em seu empreendedorismo diferenciado, possuía a nobre postura de olhar para o boi pensando na carne, não apenas no ganho de peso.
Em seguida, outra entrevista. Um pesquisador que trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra o vírus Zika. Relata objetivamente o processo da pesquisa. Haverá testes em ratos e primatas.
Vêm então os comerciais. A propaganda fala sobre um chiclete sabor carne para cães.
Da janela do veículo, além das tradicionais banquinhas de bolo, pão de queijo e café com leite nas calçadas, vejo um cidadão enxotando brutalmente as pombas de seu caminho com um grande guarda-chuva fechado. Outro veículo é atirado sem o menor senso de culpa para cima de um grupo de pombos que ousava ciscar na porção territorial estipulada para a passagem de latarias motorizadas. Cena esta, batida de tão comum.
Esta foi apenas mais uma manhã. Em realidade, apenas mais um início de manhã. Apenas a primeira hora de minha existência coletiva neste dia.
Em minha mente, como de costume, ressoa e repercute renitentemente a frase apresentada no prólogo do interessantíssimo filme O Enigma de Kaspar Hauser: “estes gritos assustadores ao redor, são o que chamam de silêncio?”
E começo a trabalhar.