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CENÁRIO ALARMANTE

Antes da seca, Cerrado já supera a Amazônia em destruição pelo fogo

O bioma ainda é um sumidouro de carbono, mas secas mais intensas e o avanço do desmate podem inverter esse papel

22 de agosto de 2025
Aldem Bourscheit
5 min. de leitura
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Incêndio em área de cerrado próxima ao aeroporto de Brasília (DF). Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O período mais forte da seca está só começando, mas o Cerrado já enfrenta um novo cenário alarmante. Entre janeiro e meados de agosto, o número de queimadas foi quase o dobro do registrado na Amazônia. A gravidade é ainda maior porque a savana brasileira tem cerca da metade da área da floresta equatorial.

Ao longo desses meses, foram registrados 17.326 focos de calor no Cerrado contra 9.184 na Amazônia, mostram dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação –, compilados pelo Metrópoles.

Apesar da incidência de queimadas no Cerrado ser menor em comparação ao mesmo período do ano passado, seguem acima da média histórica e preocupam ainda mais quando outras grandes regiões naturais do país são colocadas na balança.

“O Cerrado foi o bioma que menos reduziu em relação ao fogo”, ressaltou Ane Alencar, diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora do MapBiomas Fogo, que mapeia as queimadas no Brasil.

Grande parte desses focos surgem e fogem do controle quando o fogo é usado para limpar áreas para lavouras ou gado ou abrir novas frentes de exploração, sobretudo em palcos de forte expansão do agro.

“A região que tem queimado bastante é o Matopiba, ainda mais próximo à Caatinga”, observou à reportagem Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília e colaboradora do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

Além do uso intencional das queimadas, fatores climáticos podem explicar a disparada dos incêndios. “A ausência de um La Niña forte resultou em chuvas irregulares, reduzindo queimadas no Pantanal, mantendo-as altas no Cerrado e intercaladas na Amazônia”, explicou Alencar.

Quanto ao clima este ano, a Agência Nacional de Águas (ANA) informa que o Cerrado enfrenta um quadro de estiagem persistente nos últimos meses, mas contrastando com o avanço e a intensificação desse fenômeno em outras regiões do país.

Ao mesmo tempo, o manejo intencional do fogo tem certo peso na contagem de focos de calor no Cerrado. Afinal, ao contrário de na Amazônia, na savana ele pode ser usado de forma defensiva.

“Uma das prevenções de incêndio no Cerrado é justamente o fogo”, explica Alencar, destacando as “queimadas prescritas”, feitas por brigadistas em áreas estratégicas para evitar grandes incêndios e proteger a biodiversidade.

Além de em fazendas e unidades de conservação estaduais e municipais, queimadas preventivas são feitas em parques nacionais como de Brasília (DF), chapadas dos Veadeiros (GO) e dos Guimarães (MT), dos Campos Ferruginosos (PA) e da Ilha Grande (PR).

Bioma solapado por desmate e fogo

Embora o fogo faça parte da história do Cerrado – era provocado sobretudo por raios, durante as chuvas –, seu uso recorrente e sem manejo adequado é um dos maiores motores de destruição. “Queimar todo ano, no auge da seca, causa danos maiores e impede a recuperação da vegetação”, alertou Bustamante.

Esse é um dos principais fatores do desaparecimento de metade da vegetação original do bioma. “Isso acarreta fragmentação, perda de biodiversidade e redução da resiliência do bioma”, destacou Alencar. “A situação se agrava pelo fato de se tratar de um território majoritariamente privado e tem baixa proteção legal”.

Dados federais contam menos de 9% do Cerrado em parques e outros tipos de unidades de conservação. Além disso, a legislação florestal permite que sejam desmatados 80% das fazendas no bioma, ou 65% quando elas estão em áreas de transição para a Amazônia.

Contudo, além de algoz, o agro também é vítima do clima mutante. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) divulgou que incêndios de junho a agosto causaram R$ 14,7 bilhões em prejuízos e afetaram 2,8 milhões de ha – quase o tamanho da Bélgica –, com perdas em produção, solo e estruturas de fazendas. A entidade não atendeu nosso pedido de entrevista até o fechamento da reportagem.

E as perdas não se restringem ao fogo. Pesquisas indicam que a própria produção de soja, um dos motores do agro nacional, já enfrenta alterações do clima que podem comprometer sua viabilidade no Cerrado.

“Estudos indicam mudanças no ‘envelope climático’ da soja”, avisou Alencar. “As áreas de soja estão ficando com um clima mais seco e mais quente, o que tende a demandar mais irrigação e pressionar ainda mais os recursos naturais”.

Passou da hora de agir

Desmatamento e fogo além da conta ameaçam o equilíbrio e o futuro do Cerrado brasileiro, que pode se tornar no futuro próximo uma fonte de carbono e balançar o coreto da crise climática. Especialistas reforçam a gravidade da situação.

Conforme Bustamante, o Cerrado ainda é um dreno de carbono – liberando CO₂ na seca e absorvendo nas chuvas –, mas esse equilíbrio está ameaçado. “Com secas mais intensas, chuvas encurtadas e avanço do desmate, o bioma pode deixar de ser um sumidouro e tornar-se fonte permanente do gás [de efeito estufa]”.

Conter os riscos catastróficos e preservar o papel do Cerrado como “caixa d’água” do país depende, no curto prazo, de fiscalização, cumprimento da lei e maior compromisso do setor privado.

“Também é necessário mais sustentabilidade na produção”, acrescentou Alencar. “O Cerrado é de enorme importância para os serviços ecossistêmicos, mas sofre crescente pressão econômica e ambiental”.

Por isso, pesquisadores defendem o fortalecimento de políticas públicas e uma atuação mais efetiva dos estados. “Falta articulação e órgãos ambientais empoderados”, analisou Bustamante.

O futuro do Cerrado depende das escolhas que serão feitas agora. Ignorar sua destruição seguirá comprometendo fontes de água, o equilíbrio do clima, a conservação da biodiversidade, populações urbanas e rurais e a produção no campo. Queremos correr este risco?

Fonte: O Eco

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