Atualizado em 12/12/2013
Um post do blog IdeaFixa, de 12 de setembro, convida os leitores ao deslumbramento ao verem como algumas pessoas imaginavam, em 1910, como seria o ano 2000. Estão naquele post 14 figuras que refletiam a literalmente alada imaginação de um(a) desenhista francês(a) de 103 anos atrás. Para quem as desenhou, todo mundo teria seu kit portátil de voo, usaria patins motorizados, poderia ter taças de vinho servidas na mão a bordo de aviões minúsculos em pleno voo, haveria um eletrônico mas literal enfiamento de conhecimento nas cabeças das crianças etc. Mas por outro lado, a indumentária das pessoas, tal como a cultura em geral, seria a mesma, 90 anos depois, daquela da França urbana de 1910.
O post em questão me fez relembrar, quase que instantaneamente, um presenciamento meu de como algumas pessoas do começo da década de 2010 imaginam como será o mundo no nascer da de 2100. Mais precisamente, me devolveu à lembrança a capa do caderno especial “Folha Corrida”, comemorativo dos 90 anos da Folha de S. Paulo, divulgado em 19 de fevereiro de 2012 depois de um concurso que havia votado quais seriam as melhores manchetes imaginariamente ideais em 2101. Tal capa tinha como duas das manchetes que um chip de aumento da capacidade cerebral havia sido testado com sucesso em animais não humanos e que a pecuária não só continuaria existindo, com clonagem de animais explorados de pelo menos quinze espécies, como seria exportada a Marte – sem que nem mesmo a centenária lição sobre a nocividade de se introduzir espécies invasoras em habitats estranhos a elas tivesse sido aprendida.
Percebi como são incrivelmente semelhantes o anacronismo da pessoa que desenhou as figuras de sua imaginação parcialmente futurista em 1910 e o dos indivíduos que imaginaram que em 2101 o paradigma vivisseccionista e pecuarista será exatamente o mesmo do começo do século 21. Alguns aspectos desses futuros imaginários nada mais são do que reproduções fiéis e inalteradas de tradições do presente, sejam elas culturais sem implicações éticas diretas ou explicitamente ético-morais (incluindo ambientais).
Se para a pessoa desenhista de 1910 as roupas e paisagens de sua época e local de moradia continuariam as mesmas em 2000, para os indivíduos de 2011/2012 a mentalidade de escravidão animal será a mesma em 2101. Nesse futuro imaginado no começo desta década presente, animais como roedores continuariam sendo vítimas de experimentos que, não bastasse serem autênticas roletas russas, jogos de azar macabros em que o preço da aposta são a vida e a integridade físico-psicológica alheias, ainda implicarão, com grande probabilidade, a morte das cobaias vítimas da pesquisa, tal como o vivisseccionista Yuri Grecco revela em seu vídeo, respondido por mim, sobre pesquisas em animais. E a pecuária não só permaneceria forte como atividade econômica como continuaria alçando níveis mais e mais avançados e perigosos de manipulação genética, otimização de “fabricação” de produtos animais e invasão de ecossistemas alienígenas.
O anacronismo é claro, na incapacidade de ambas as pessoas imaginadoras de conceber os costumes culturais e morais de um futuro distante para os padrões humanos. Diante dessa inabilidade, lhes restou imprimir 90 anos depois os costumes de seu próprio tempo. Em se falando desse problema, é aceitável que quase todos nós não consigamos imaginar como serão as vestimentas de nossos descendentes de daqui a quatro gerações. Mas é bem mais complicado e questionável uma pessoa que vive na chamada modernidade tardia reservar para um futuro relativamente distante uma moralidade estanque remanescente de quase um século antes. É comparável com um idealizador que viveu em 1800 vislumbrar que agora em 2013 as carruagens de tração animal seriam acessíveis a todos e o mercado mundial de escravos humanos não só continuaria globalmente legalizado como seria próspero como nunca.
Refletindo sobre isso, podemos diminuir, ainda que só um pouco, nossa falibilidade em prever o futuro. E isso começa pelo questionamento das tradições morais vigentes. Perceberemos o quanto nossa sociedade será repudiada no futuro por acreditar que os mesmos abusos éticos hoje legalizados e tolerados continuarão para sempre firmes e fortes, tal como hoje muitos de nós temos vergonha das sociedades escravistas, ultraetnocêntricas e ultrapatriarcais do início do século 19, uma época em que os intelectuais já cantavam a glória de serem “modernos” e “superiores” aos “não modernos”. E esse questionamento inclui imprescindivelmente pensar a forma como os seres humanos tratam os animais não humanos e o quanto nós podemos avançar nas próximas décadas, no sentido de libertar tanto os outros animais do título de propriedade de humanos como a nossa própria espécie da dependência da escravidão animal.
Fazendo essa reflexão questionadora, poderemos transcender a limitada imaginação dos “futurólogos” tradicionalistas que acreditam que o mundo de 2101 será pouco mais do que uma remanescência dos mesmos costumes morais de 2011/2012. E também concluiremos que nossos descendentes que viverão no começo do século 22 vão nos achar tolos e ingênuos por termos acreditado que será tão normal e aceitável quanto hoje que animais sejam escravizados, torturados e mortos em nome de interesses humanos. No mais, teremos a oportunidade de não repetir os devaneios anacrônicos do indivíduo artista que pintou as figuras do “mundo do ano 2000” e dos leitores da Folha de S. Paulo que imaginam que a vivissecção e a pecuária continuarão intocadas – ou mais, permanecerão tornando-se cada vez mais avançadas e espremendo mais e mais de suas vítimas não humanas – em 2101.