O regime de seca intenso, o calor excessivo, a incidência de focos de incêndio em números recordes em 2020, e a crise hídrica no Pantanal causaram, possivelmente, mudanças de comportamento dos animais habitantes do bioma – como em relação a maneira das espécies silvestres se comportarem perante a reduzida oferta de comida disponível.
Segundo a BBC News Brasil, ainda está em fase de análise a causalidade dos desastres ambientais do Pantanal com as mudanças de hábitos dos animais, notadas por profissionais que atuam no local.
“O fogo pode estar menos intenso (neste ano), mas a fome e a seca estão mais presentes”, fala à BBC News Brasil Ilvanio Martins, presidente da Fundação Ecotrópica, que gerencia quatro reservas ambientais no Pantanal – uma reserva foi quase inteiramente atingida pelas queimadas de 2020.
“A fome não é tão escandalosa quanto o fogo, mas seu efeito é ainda mais devastador. Ela é severa e silenciosa. E afeta toda a cadeia (ecológica). A árvore que queimou não floriu; as que floriram não germinaram tantas sementes, e daí conseguem alimentar uma quantidade menor de pássaros e roedores”, ele diz.
Ele dá exemplo das árvores de ipê, que são fonte de alimento aos animais mas mal floresceram em 2021. “E a florada dos ipês foi muito mais tímida neste ano.”
Palmeiras estão em menor quantidade e por isso estão fazendo falta a animais dependentes delas na alimentação e em proteção (abrigo), como as araras azuis e os roedores.
Segundo Jorge Salomão, veterinário da organização Ampara Animal Silvestre no Pantanal, vários animais conseguiram se adaptar ao ambiente após os incêndios do ano passado ao se deslocarem para outras áreas do bioma que eles encontravam alimentos.
“O que complicou muito, neste ano, foi a seca”, relata o veterinário à BBC News Brasil.
“Então os animais saíram de uma situação crítica (de fogo) e emendaram na seca mais intensa dos últimos dez anos.”
Mudança de hábitos e o ciclo de mazelas
A seca levou a uma indisponibilidade visível de áreas que os animais se banham, tomam água e se alimentam.
Ilvanio Martins diz perceber em visita recente em setembro que se deparou com “animais debilitados, perambulando”.
“Quando esses animais não encontram a água que antes estava ali, eles se desorientam.”
Os peixes que vivem em locais com menor fluxo de água não conseguiram se reproduzir no mesmo volume, o que provocou escassez de alimento a aves que se alimentam deles.
Segundo Martins, visto a escassez, parte dos animais precisou mudar de hábitos para conseguir se alimentar. Alguns começaram a “furtar” alimentos de cozinhas e restaurantes ou de locais que antes nem chegavam perto. Outros passaram a se alimentar diferente do previamente habitual. “Vimos macacos e periquitos comendo manga verde, que não seria parte da dieta deles.”
Macacos começaram a estender as mãos a humanos, pedindo comida – “como se fossem mendigos”, diz Martins -, porque aprenderam que assim conseguem alimentos.
De acordo com o veterinário Jorge Salomão, diferentemente de Martins, ele enxerga o comportamento dos macacos de estender a mão como um condicionamento por contarem mais com alimentos distribuídos pelos humanos.
“Teve essa mudança de comportamento, mas acho que ela se deve muito ao assistencialismo feito no ano passado (para minimizar os danos dos incêndios)”, explica.
“Os primatas aprendem muito rápido, passaram a pegar comida da mão da gente. Mas eu acho que é uma alteração comportamental mais por eles terem perdido o medo de se aproximar do que pela dificuldade (em conseguir comida).”
O zootenista Thiago Graça também percebeu mudanças de hábito “absurdas e não naturais” dos animais por conta da escassez.
Ao perceberem alguma oferta de alimentos dada por humanos, “os animais chegam com uma voracidade alarmante, com o desespero da fome”, diz Graça, que é técnico da organização GRAD (Grupo de Resgate de Animais em Desastres).
“O Pantanal perdeu muita árvore frutífera, muito material verde e muita fauna também. Não é natural eles se aproximarem tanto da gente.”
Para a bióloga e zoóloga Daniella França, da organização Chalana Esperança, nota-se que animais podem estar passando fome em razão da seca e dos incêndios, porém os casos relatados precisam ser antes estudados para ver se há uma relação causal.
“O que podemos fazer, por enquanto, é nos basear em situações que já tenham ocorrido no passado e, é claro, tentar ajudar com a dessedentação (combate à sede) e alimentação em locais estratégicos, como fizemos no ano passado, mas sempre aprendendo com os erros”, fala ela.
É necessário ter o entendimento real da situação da fome dos animais pantaneiros e escassez de alimentos segundo um olhar técnico de acordo com a veterinária, para se evitar de alimentar os animais erroneamente, como alimentos que possam colocar os bichos em contato com bactérias às quais não estão acostumados, ou deixar comida próximos a rodovia Transpantaneira, o que pode levar ao atropelamentos deles.
A oferta de comida tem de ser analisada segundo especialistas que são frequentes no Pantanal.
A oferta humana – especializada – de alimentos e água tem sido necessária, de acordo com as organizações, para diminuir os impactos da difícil situação de animais neste momento.
A Ampara Silvestre tem transportado caminhões-pipa alugados com capacidade de 50 mil litros de água para irrigar lugares onde normalmente haveria água e que, portanto, são frequentados pelos animais.
“Mas o tempo está muito seco. Então de onde tirar 50 mil litros de água? Estamos tirando de poços, mas não dá para fazer isso por muito tempo. Temos que torcer para que chova logo”, diz Salomão.
Nesses mesmos lugares irrigados, a ONG fornece comida.
“Compramos (o peixe) tuvira dos pescadores e deixamos para as lontras, ariranhas – é uma comida do próprio bioma”, descreve Salomão.
“Também deixamos frutas e verduras, como banana, mamão, batata doce e maçã. É complexo, porque não é o que os animais comeriam normalmente. Mas tomamos cuidado ao escolher para que, mesmo que mais deles (frutas e verduras) nasçam pela dispersão de sementes, não prejudiquem o bioma nem atrapalhem as espécies nativas.”
Ovos, que são fonte de proteína, também têm sido fonte de alimento para muitos animais, conta Thiago Graça. “Até mesmo as cascas dos ovos, os pequenos pedacinhos, estão sendo comidos. É uma situação surreal.
Seca no Pantanal: problema de longo prazo
As consequências da falta de comida leva a um efeito cascata ruim ecologicamente: animais pouco alimentados não conseguem espalhar sementes pela mata, dificultando sua renovação, e portanto, mantendo e ou agravando a indisponibilidade de alimentos, de acordo com Martins.
Historicamente, prossegue, “o Pantanal não é um ambiente pronto e acabado: ele está em constante mudança e construção, em sua alternância entre cheia e vazante”.
As áreas secas e afetadas pelo fogo intenso estão com uma terra mais arenosa e empobrecida, diz ele.
“A terra perde nutrientes e capacidade de gerar vida”, afirma Martins. “A semente cozinha no chão e não brota. Esse ‘agrestamento’ é perceptível por aqui.”
Os incêndios do ano passado consumiram um terço de todo o Pantanal.
De janeiro de 2020 até agora, as queimadas destruíram 3,8 milhões de hectares nesse bioma, impactando a vida de ao menos 65 milhões de animais vertebrados nativos e 4 bilhões de invertebrados, indica um estudo publicado das organizações ambientais ICMBio, PrevFogo/Ibama e Embrapa Pantanal, baseada nas populações presentes nos locais afetados.
Os animais se feriram ou morreram com o fogo, ou perderam seu habitat.
Os incêndios do ano passado junto da seca este ano, que levou a diminuição histórica nos níveis dos rios pantaneiros, pode culminar em uma devastação ainda mais intensa, segundo fala de ambientalistas na Câmara dos Deputados em julho, em audiência na Comissão de Queimadas nos Biomas Brasileiros.
“Desde o fim da década de 1990, o período seco tem ficado mais seco e também o período chuvoso tem ficado mais seco”, disse na audiência, segundo a Agência Câmara, Gilvan de Oliveira, coordenador de Ciências da Terra do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
“De 2010 em diante, temos um predomínio de chuva abaixo da média. Então algo realmente está acontecendo no Pantanal, e obviamente chama a atenção o período 2020-2021. Neste ano, não é possível somente fazer orientação ou informativos: têm que ocorrer ações efetivas”, explica.
Dados de satélite analisados pela organização MapBiomas, o Pantanal – que é a maior planície úmida do planeta – mostram que o bioma perdeu 29% de sua superfície alagada nos últimos 30 anos.
A seca diminui o volume de animais, como peixes, devido a entraves ambientais gerados a reprodução, levando a mais queimadas, e portanto a mais problemas ambientais.
Com a oferta humana de alimentos, “estamos atendendo uma demanda emergencial neste período de seca, que espero que pare quando a chuva volte”, diz Thiago Graça.
A longo prazo, o Pantanal pode ficar cada vez mais incapacitado de se regenerar ao estar exaurido demais, não se preparando para as temporadas de seca futuras o que preocupa os especialistas.
“A cada ano o Pantanal parece que vai precisar mais da nossa ajuda”, diz.